sábado, 1 de abril de 2017

JÚLIA GRINGA - Ubireval Alencar






J Ú L I A   G R I N G A – Ubireval Alencar

Alta e espigada, cabelo de arapuá, como se usa no sertão de Alagoas, lá vai Júlia com seu pote d´água. Das cinco da manhã às seis da tarde, aquele vulto persistente atende os diferentes pedidos de donas de casa. De olhar selvagem, cuspo certeiro nas reentrâncias do caminho, segue firme o passo da sombra que a acompanha. Assim levou anos a fio, destilando gota a gota a sobrevivência da população alienada em seus direitos.

Mas o tempo foi passando, outros transportes de latas d´água começaram a aparecer, e Júlia perde pouco a pouco sua freguesia, seu passo ágil, sua resistência. Desnutrida e inoperante, devaneia alguns instantes nas baforadas do velho cachimbo, acalento purificador de velhas mágoas. 

Foi a partir dessa condição que os atos compensatórios de uma vida deram margem ao que mais tarde a chamariam pelo apelido de "A Gringa".  Embora com uma certa idade, alguns cabelos  brancos a salpicar a touceira que a acobertava, aquela figura recebe, atende e alimenta alguns desocupados que a procuravam altas horas da noite. Moços e amadurecidos, solteiros ou casados. Com o dia claro, essas façanhas seriam recontadas para a turba de malta, nas calçadas da Prefeitura.

Nessa condição ínfima, encostara-se a um depósito de ferro velho e pneus, onde conseguira improvisar uma cobertura para as noites de chuva e frio. Um galpão gotejante ameaçador perpassava sobre seu leito de lona e capim seco. Longos meses levara na promiscuidade dos sifilíticos e outros tártaros que a infestavam. Sintomas evidentes da contaminação foram-se espalhando pelo corpo todo, e a prostração maior a levaria a repetidos momentos de convalescença. Um só hospital não havia sido erguido ou requerido para aquele lugarejo.

Nesse transe, aviva-se a lembrança do filho que a abandonara. Outros tantos potes d´água transportara para que não faltasse o alimento à criança desprotegida. O garoto crescera,  desconhecendo o possível pai, entusiasmara-se pelo futebol, e, depois de obtida alguma fama, se fora rumo a São Paulo, deixando a mãe, indefesa e despreparada, entregue à esperança de que um dia viria buscá-la. Agora ela vive a condição de esmolante, continuamente enfermiça, acalentando a hora da vinda do filho que tarda em chegar. 

Nas ruas da cidade, a procissão em homenagem à padroeira local vagueia pelas casas que se enfeitam de toalhas bordadas. Políticos, comerciantes, funcionários públicos e também os desocupados se paramentam naquele instante. Júlia não poderia faltar. Retoma as forças, complementa suas vestes com os ultrajes que a vida lhe impôs, e perfila-se no cortejo comemorativo. Esquecida do passado sombrio, entoa os hinos religiosos, benze-se e reza na compunção dos mais dignos. Compreendia, naquele momento, sua dignidade de pessoa, muito parecida com a dignidade de outras, de importância social maior. Aquilatava, ao sabor dos sentimentos, a tábua escorregadia que irmanava a todos, mais bem,  ou mal sucedidos.

Defronte a seu rancho improvisado, detém-se e concede em ficar a olhar a multidão que passa. Um ou outro dos que lhe fizeram visitas furtivas tem a hombridade de dirigir-lhe o olhar, fazer-lhe a vênia comum às pessoas que se respeitam. Respeitosas senhoras, de pudores afinados, aligeiram o passo e cantam mais forte para desfazer a imodéstia consentida. "Filhas de Maria"! e hoje, eu, filha da rua.

Um belo dia, desce do ônibus proveniente de São Paulo um quarentão, de cabelo acarapinhado, bem falante e sotaque descomedido. Recolhe informações apressadas e junta-as às malas de viagem. Era o Tonho da Júlia, retardatário, que havia esquecido, de longe, o contato maior. Nesses longos anos, não havia escrito uma só carta, nunca remetera uma lembrança amiga, jamais perguntara qual era a condição real da própria mãe. Mas Júlia havia descansado na semana anterior, como indigente, no cemitério local. Seu legado de servidão e sofrimentos a capacitariam a um título de praça pública, por falta de personalidades mais ilustres.

P.S. Parte desta crônica se baseia em fatos reais, parte imaginários. Viveu a Júlia em Mata Grande, e seu ganho era dominantemente transporte de água em pote de barro para as famílias. Existiu o filho, Antônio (Tonho de Júlia), bom jogador de futebol, atacante ou ponteiro, e se foi pro sudeste do país, e não mais retornou. 

P.S.2. Eu havia redigido essa crônica anos atrás, e, longe da cidade, já a supunha morta. Em visita à querida terra, não imaginava a surpresa que eu teria. Indagando sobre a Júlia, imediatamente me apontaram a casinha na subida pro Galo assanhado, onde ela ainda vivia. Fui até lá, levei-lhe uns brindes de alimentos, e lhe disse que eu a havia matado numa história sobre a vida dela. Ela me deu a maior das virtudes de um ser humano: uma linda risada, dizendo ainda que a cada dia ela morria para nascer de novo. Inimaginável. Naquele momento eu vi a real nobreza na face de uma mulher negra. Isso foi tão real, tão verdadeiro como nunca eu havia visto. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário