J Ú L I A G R I N G A –
Ubireval Alencar
Alta e espigada, cabelo de
arapuá, como se usa no sertão de Alagoas, lá vai Júlia com seu pote d´água. Das
cinco da manhã às seis da tarde, aquele vulto persistente atende os diferentes
pedidos de donas de casa. De olhar selvagem, cuspo certeiro nas reentrâncias do
caminho, segue firme o passo da sombra que a acompanha. Assim levou anos a fio,
destilando gota a gota a sobrevivência da população alienada em seus direitos.
Mas o tempo foi passando,
outros transportes de latas d´água começaram a aparecer, e Júlia perde pouco a
pouco sua freguesia, seu passo ágil, sua resistência. Desnutrida e inoperante,
devaneia alguns instantes nas baforadas do velho cachimbo, acalento purificador
de velhas mágoas.
Foi a partir dessa condição
que os atos compensatórios de uma vida deram margem ao que mais tarde a
chamariam pelo apelido de "A Gringa". Embora com uma certa
idade, alguns cabelos brancos a salpicar a touceira que a acobertava,
aquela figura recebe, atende e alimenta alguns desocupados que a procuravam
altas horas da noite. Moços e amadurecidos, solteiros ou casados. Com o dia
claro, essas façanhas seriam recontadas para a turba de malta, nas calçadas da
Prefeitura.
Nessa condição ínfima,
encostara-se a um depósito de ferro velho e pneus, onde conseguira improvisar
uma cobertura para as noites de chuva e frio. Um galpão gotejante ameaçador
perpassava sobre seu leito de lona e capim seco. Longos meses levara na
promiscuidade dos sifilíticos e outros tártaros que a infestavam. Sintomas
evidentes da contaminação foram-se espalhando pelo corpo todo, e a prostração
maior a levaria a repetidos momentos de convalescença. Um só hospital não havia
sido erguido ou requerido para aquele lugarejo.
Nesse transe, aviva-se a
lembrança do filho que a abandonara. Outros tantos potes d´água transportara
para que não faltasse o alimento à criança desprotegida. O garoto crescera,
desconhecendo o possível pai, entusiasmara-se pelo futebol, e, depois de
obtida alguma fama, se fora rumo a São Paulo, deixando a mãe, indefesa e
despreparada, entregue à esperança de que um dia viria buscá-la. Agora ela vive
a condição de esmolante, continuamente enfermiça, acalentando a hora da vinda
do filho que tarda em chegar.
Nas ruas da cidade, a procissão
em homenagem à padroeira local vagueia pelas casas que se enfeitam de toalhas
bordadas. Políticos, comerciantes, funcionários públicos e também os
desocupados se paramentam naquele instante. Júlia não poderia faltar. Retoma as
forças, complementa suas vestes com os ultrajes que a vida lhe impôs, e
perfila-se no cortejo comemorativo. Esquecida do passado sombrio, entoa os
hinos religiosos, benze-se e reza na compunção dos mais dignos. Compreendia,
naquele momento, sua dignidade de pessoa, muito parecida com a dignidade
de outras, de importância social maior. Aquilatava, ao sabor dos sentimentos, a
tábua escorregadia que irmanava a todos, mais bem, ou mal sucedidos.
Defronte a seu rancho
improvisado, detém-se e concede em ficar a olhar a multidão que passa. Um ou
outro dos que lhe fizeram visitas furtivas tem a hombridade de dirigir-lhe o
olhar, fazer-lhe a vênia comum às pessoas que se respeitam. Respeitosas
senhoras, de pudores afinados, aligeiram o passo e cantam mais forte para
desfazer a imodéstia consentida. "Filhas de Maria"! e hoje, eu, filha
da rua.
Um belo dia, desce do ônibus
proveniente de São Paulo um quarentão, de cabelo acarapinhado, bem falante e
sotaque descomedido. Recolhe informações apressadas e junta-as às malas de
viagem. Era o Tonho da Júlia, retardatário, que havia esquecido, de longe, o
contato maior. Nesses longos anos, não havia escrito uma só carta, nunca
remetera uma lembrança amiga, jamais perguntara qual era a condição real da
própria mãe. Mas Júlia havia descansado na semana anterior, como indigente, no
cemitério local. Seu legado de servidão e sofrimentos a capacitariam a um
título de praça pública, por falta de personalidades mais ilustres.
P.S. Parte desta crônica se
baseia em fatos reais, parte imaginários. Viveu a Júlia em Mata Grande, e seu
ganho era dominantemente transporte de água em pote de barro para as
famílias. Existiu o filho, Antônio (Tonho de Júlia), bom jogador de
futebol, atacante ou ponteiro, e se foi pro sudeste do país, e não mais retornou.
P.S.2. Eu havia redigido essa
crônica anos atrás, e, longe da cidade, já a supunha morta. Em visita à querida
terra, não imaginava a surpresa que eu teria. Indagando sobre a Júlia,
imediatamente me apontaram a casinha na subida pro Galo assanhado, onde ela
ainda vivia. Fui até lá, levei-lhe uns brindes de alimentos, e lhe disse que eu
a havia matado numa história sobre a vida dela. Ela me deu a maior das virtudes
de um ser humano: uma linda risada, dizendo ainda que a cada dia ela morria
para nascer de novo. Inimaginável. Naquele momento eu vi a real nobreza na face
de uma mulher negra. Isso foi tão real, tão verdadeiro como nunca eu havia
visto.
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