domingo, 2 de abril de 2017

PANGA E ZÉ ALEIJADO - Ubireval Alencar



PANGA-LELÊ  E  ZÉ ALEIJADO (ZÉ SETE-MOLAS)

                                                                                                          Ubireval Alencar 





Há cidades em cuja historicidade se veem o desenvolvimento urbanístico, arquitetura em contínua evolução, mas existe um silêncio na participação e representação de personagens singulares, os mais simplórios, e que no entanto fazem, de modo hilário ou até o aparente ridículo, a composição do ser-gente, personagem-ator dos seus atos e vivências práticas. Elas têm endereço certo. A cidade de entre-serras da Onça e do Urubu, do Sabonete. 

Mata Grande tem a especialíssima condição, como se fosse fomento vicejador desses personagens, de vida fixa ou até temporários, continuamente circulando na cidade. PANGA-LELÊ e ZÉ ALEIJADO (ou ZÉ SETE-MOLAS) como eram notoriamente conhecidos, eram moradores contínuos, vindos de lá da Rua Nova, não sei se no final da rua, já chegando ao Mandacaru, ou ambos do Mandacaru mesmo. O que os distinguia, que feições entre si assemelhavam, ou que "modus vivendi" os caracterizava individualmente?

PANGA-LELÊ não tinha nome para a moçada da cidade. Chamava a atenção pela elevada altura, um esboço de homem bonito, cor clara, sempre com a mesma roupa semanal, um chapéu de couro derreado. Inofensivo, devia ter a ingenuidade tão pura que jamais se ouviu palavra detratora ou atitude demolidora de sua dignidade. Faltava-lhe articulação verbal (certamente com sequelas na fala, na língua) pois babava continuamente pelo canto da boca. Postava-se como "vestal masculino", modos um tanto desengonçados, em determinados pontos da cidade, quase sempre encostado às paredes da padaria de Seu Pantaleão. E seu olhar era como uma câmera de TV a girar cento e oitenta graus, a tudo filmando, gravando, sem o redator efetivo dessa leitura de vida tão insignificante.  Não é toda cidade no mundo que construiria essa personagem tão singular.

ZÉ ALEIJADO (o ZÉ SETE-MOLAS) já vivia o tempo cronológico, falante, e exercia a profissão de engraxate, com boa freguesia na cidade. O que PANGA tinha em altura faltava a ZÉ SETE-MOLAS no tamanho curto, perninhas miúdas e como se trambicassem. Dava impressão de que havia sido feita uma montagem na composição de seu corpo: todo o tronco, braços, cabeça,  fora sobreposto ao restante, quadris e pernas. Sua movimentação de caminhante, em sentido vertical, dava-lhe plasticamente a disponibilidade de, como se fora um relógio alto de pé, viver e exercitar os movimentos do tronco em sentido horizontal, em perfeita sintonia. Por isso talvez o criativo apelido de ZÉ SETE-MOLAS. Havia um balanço harmônico de lado a lado, como se fosse um pêndulo na horizontalidade em marcha da verticalidade dos passos trôpegos. Figura ímpar. 

Ambos personagens viviam sua "praxis" existencial. ZÉ ALEIJADO se comportava como essa conhecida "Radio Sertão News", discutindo, em meio a escovação e brilho de sapatos, os últimos boletins policiais, futricas locais, mortandades na serra. Na hora mais argumentativa, entrava em estrabismo convergente (um olho natural e outro a mudar de posição). PANGA-LELÊ era a personificação do "cameraman" , o cinegrafista de foco obtuso, como se digitasse e nunca viesse a publicar o que lia, compreendia, e guardava em segredos da mente alienada. Mas havia uma cidade, havia a movimentação de pessoas que o PANGA comungava no seu feedback interiorizado. 

E viveram seus dias, cumpriram suas jornadas de existência, foram acolhidos pela cidade amiga, hospitaleira de tantos e contínuos pares que sempre transitavam nela. Dava impressão, quem morava fora de Mata Grande, que existia uma escala constante de personagens se revezando conforme as estações mais ou menos propícias. Quem não se lembra do criado e protegido de Seu Vida, o Zé Doido, do temporário e intrigante Pereirinha? Importa que semelhantes criaturas jamais eram molestadas por adultos ou crianças. Por isso nela se demoravam o tempo que lhes aprouvesse.

Nas festividades, sempre se via a presença elegante da figura do PANGA-LELÊ. Modo sempre altaneiro, ali se balançava com uma naturalidade meio desconjuntada,  como quem fiscalizava o direito de todos se congraçarem nas ruas, calçadas e brinquedos de Natal. E ZÉ SETE-MOLAS esbaforido de encomendas para a hora do baile, logo mais à noitinha. Só Mata Grande foi capaz de manter esse estuário de vidas humanas magníficas, enriquecido pelas múltiplas nascentes de água borbulhando a cada recanto das encostas. Que fim levaram em seus dias? A que famílias pertenciam? Um cemitério tão anônimo os deve ter recebido na grandiosidade de uma vida ensimesmada. 
Ubireval Alencar

Um comentário:

  1. Pois é. A Grande e universal Paris fez vir à luz o tão famoso CORCUNDA DE NÓTRE-DAME (^). Mata Grande borbulha em similares na composição física e retratos da alma:Ze Grilo, Julia Grnga, Temistocles, Jandaia, Panga-lelé.

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