PANGA-LELÊ E ZÉ
ALEIJADO (ZÉ SETE-MOLAS)
Ubireval Alencar
Há cidades em cuja
historicidade se veem o desenvolvimento urbanístico, arquitetura em contínua
evolução, mas existe um silêncio na participação e representação de personagens
singulares, os mais simplórios, e que no entanto fazem, de modo hilário ou até
o aparente ridículo, a composição do ser-gente, personagem-ator dos seus atos e
vivências práticas. Elas têm endereço certo. A cidade de entre-serras da Onça e
do Urubu, do Sabonete.
Mata Grande tem a
especialíssima condição, como se fosse fomento vicejador desses personagens, de
vida fixa ou até temporários, continuamente circulando na cidade. PANGA-LELÊ e
ZÉ ALEIJADO (ou ZÉ SETE-MOLAS) como eram notoriamente conhecidos, eram
moradores contínuos, vindos de lá da Rua Nova, não sei se no final da rua, já
chegando ao Mandacaru, ou ambos do Mandacaru mesmo. O que os distinguia, que
feições entre si assemelhavam, ou que "modus vivendi" os
caracterizava individualmente?
PANGA-LELÊ não tinha nome para
a moçada da cidade. Chamava a atenção pela elevada altura, um esboço de
homem bonito, cor clara, sempre com a mesma roupa semanal, um chapéu de couro
derreado. Inofensivo, devia ter a ingenuidade tão pura que jamais se ouviu
palavra detratora ou atitude demolidora de sua dignidade. Faltava-lhe
articulação verbal (certamente com sequelas na fala, na língua) pois babava
continuamente pelo canto da boca. Postava-se como "vestal masculino",
modos um tanto desengonçados, em determinados pontos da cidade, quase
sempre encostado às paredes da padaria de Seu Pantaleão. E seu olhar era como
uma câmera de TV a girar cento e oitenta graus, a tudo filmando, gravando, sem
o redator efetivo dessa leitura de vida tão insignificante. Não é
toda cidade no mundo que construiria essa personagem tão singular.
ZÉ ALEIJADO (o ZÉ SETE-MOLAS)
já vivia o tempo cronológico, falante, e exercia a profissão de engraxate, com
boa freguesia na cidade. O que PANGA tinha em altura faltava a ZÉ SETE-MOLAS no
tamanho curto, perninhas miúdas e como se trambicassem. Dava impressão de que
havia sido feita uma montagem na composição de seu corpo: todo o tronco,
braços, cabeça, fora sobreposto ao restante, quadris e pernas. Sua
movimentação de caminhante, em sentido vertical, dava-lhe plasticamente a
disponibilidade de, como se fora um relógio alto de pé, viver e exercitar os
movimentos do tronco em sentido horizontal, em perfeita sintonia. Por isso
talvez o criativo apelido de ZÉ SETE-MOLAS. Havia um balanço harmônico de lado
a lado, como se fosse um pêndulo na horizontalidade em marcha da verticalidade
dos passos trôpegos. Figura ímpar.
Ambos personagens viviam sua
"praxis" existencial. ZÉ ALEIJADO se comportava como essa conhecida
"Radio Sertão News", discutindo, em meio a escovação e brilho de
sapatos, os últimos boletins policiais, futricas locais, mortandades na serra.
Na hora mais argumentativa, entrava em estrabismo convergente (um olho natural
e outro a mudar de posição). PANGA-LELÊ era a personificação do
"cameraman" , o cinegrafista de foco obtuso, como se digitasse e
nunca viesse a publicar o que lia, compreendia, e guardava em segredos da mente
alienada. Mas havia uma cidade, havia a movimentação de pessoas que o PANGA
comungava no seu feedback interiorizado.
E viveram seus dias, cumpriram
suas jornadas de existência, foram acolhidos pela cidade amiga, hospitaleira de
tantos e contínuos pares que sempre transitavam nela. Dava impressão, quem
morava fora de Mata Grande, que existia uma escala constante de personagens se
revezando conforme as estações mais ou menos propícias. Quem não se lembra do
criado e protegido de Seu Vida, o Zé Doido, do temporário e intrigante
Pereirinha? Importa que semelhantes criaturas jamais eram molestadas por
adultos ou crianças. Por isso nela se demoravam o tempo que lhes aprouvesse.
Nas festividades, sempre se
via a presença elegante da figura do PANGA-LELÊ. Modo sempre altaneiro, ali se
balançava com uma naturalidade meio desconjuntada, como quem
fiscalizava o direito de todos se congraçarem nas ruas, calçadas e brinquedos
de Natal. E ZÉ SETE-MOLAS esbaforido de encomendas para a hora do baile,
logo mais à noitinha. Só Mata Grande foi capaz de manter esse estuário de
vidas humanas magníficas, enriquecido pelas múltiplas nascentes de água
borbulhando a cada recanto das encostas. Que fim levaram em seus dias? A
que famílias pertenciam? Um cemitério tão anônimo os deve ter recebido na
grandiosidade de uma vida ensimesmada.
Ubireval Alencar
Pois é. A Grande e universal Paris fez vir à luz o tão famoso CORCUNDA DE NÓTRE-DAME (^). Mata Grande borbulha em similares na composição física e retratos da alma:Ze Grilo, Julia Grnga, Temistocles, Jandaia, Panga-lelé.
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