sábado, 16 de setembro de 2017

A MOÇA DO "SÍTIO DO GATO"-Ubireval Alencar


 A MOÇA DO "SÍTIO DO GATO"
                                                                                                             Ubireval Alencar

                                                                                         


       
                                                                                                   





Quase setenta anos distanciados daquela visão bucólica e tão aprazível do Sítio do Gato. Ubiratan já havia nascido na Rua Nova, e eu mais dois irmãos Ubirandyr e Ubiracy ali nascemos "gatenses", num agradável casarão, a partir de 1944, e nos demoramos por quase sete anos incompletos, quando a frequência ao Grupo Demócrito Gracindo se fazia iminente. Na cidade, ainda vieram Cleide e Maria José, última rama e tida como cavilosa de Zequinha e Edinete.



Eram várias propriedades de donos distintos e nem todos relembrados no tempo. A de meu pai tinha de frente vasta plantação de capim para o gado, à direita um casarão da família Canuto, com plantações ao redor. Mais à direita eram as terras do senhor Frazão, cujo plantio e gado eu não alcançava. Vi esse patriarca umas duas vezes no alpendre do nosso casarão e conversava com meu pai. Guardei na lembrança um homem alto, corpulento e gravei-lhe as densas sobrancelhas escuras.



À esquerda das nossas terras, havia a Casinha do seu Belo (devia ser João de Belo, e parece como esposa dona Afrinha), pai de lindas moças Luizinha, Perpétua, e em que sempre às noites de fim de semana eram assediadas por cavaleiros que ali se juntavam em conversas folgazãs. Fogueiras eram acesas, milhos assados e algumas bombas pipocando na noite de São João. Que liberdade e pureza de viver. Onde parávamos em brincadeiras de galopar com adestrados animais de paus secos, de quando em vez éramos convidados por uma das moças de seu Belo, acometida de ferimento aberto na perna, para urinar sobre a ferida, pois diziam que o líquido infantil era o mais indicado sanativo.



Mais adiante à esquerda, havia a casa de seu Alfredo e dona Cristina, muito cordial e conversadeira. Se filhos tiveram, já haviam rumado para São Paulo, ideário  do crescimento e mundo futuro. Bem colado à esquerda, ficava a propriedade de Temístocles, o tio Temisto e dona Ana Rosa, pais de Luís , José e Nezinho, já adultos. A tia Ana Rosa era prendada costureira de ternos de homens, e Luis e José se obrigavam a colaborar "chuleando" os moldes dos paletós sob encomenda. 



Aos fundos da nossa propriedade, havia divisão para a fruticultura, e plantio de palma, ladeado pelo curral, onde se tirava o leite matinal das vacas de crias novas. Esse terreno alongava-se até o início da serra aos fundos, onde começavam as terras do seu João Barbosa, extensas e produtivas plantações, bem coladas às terras de Pompílio Gomes, casado com a tia Neci. A natureza moldou as feições do belo patriarca João Barbosa, tributando-lhe sete filhos homens, marrudos e bem simpáticos, além de duas filhas Maria e Luzinete. Essas propriedades tinham um laço em comum, que era o baixio fértil em minação d´água, com mais de uma fonte encontrada e que atendia também a população carente no período das estiagens. Num espaço de dois a três quilômetros, vivíamos a fartura de cajus, mangas, pinhas, laranjeiras e canas-de-açúcar. 



Só recordo da presença do clã do seu João Barbosa de um mais novo, meio tímido, riso contido, que sempre passava ou fazia paradas num cavalo com arreios, em conversas longas com tropeiros dali, sempre mastigando um talo de capim com pendão na extremidade, qual boi sonso a arquitetar um pulo de cerca na propriedade circunvizinha. Por que se demorava? Por quem esperaria? Nunca pude alcançar. Mas bem fronteiriço ali, existia o Casarão do seu Frazão. 



Foi papai quem levantou a lebre. Ainda sequer o país imaginava a abertura de canais de televisão, impensável a releitura cenográfica de heróinas de "A Moreninha", de Joaquim Manoel de Macedo, "Senhora", de José de Alencar, "Olhai os Lírios dos Campos" de Érico Veríssimo, mas o sonho e a vida poemática rescendia no universo em algum lugar, por algum sentimento humano. Logo mais viria a criação do imaginário enriquecido pelas luzes e encenação novelesca dos tempos vindouros. O Sítio do Gato já prenunciava um celeiro onde tantas histórias viriam a se projetar no mundo lá fora.



Sempre acolitada por dois ou mais cavaleiros, um à frente e mais dois atrás, postava-se na maior simplicidade e beleza natural, tão branca que os flocos de algodão à beira do caminho a invejavam, a jovem montada a cavalo, com sombrinha a proteger-lhe o rosto, tal qual véu decorativo das manhas ensolaradas. Nunca seu Zequinha lhe perguntava para onde ia, o que buscava na cidade. Mas falava em alto e bom som como se nos comunicasse a nota alvissareira daquela manhã cheia de sol e beleza: " -  OLHA, LÁ VEM A EVINHA DO SEU FRAZÃO". Muito recatada, sempre fazia uma parada em frente ao pé-de-figo frondoso que nos abrigava no terreiro de frente. Não lembro quais palavras trocavam, assunto ou negócio a caminho. Deslumbrado eu ficava com a modesta cena, e o cortejo seguia no tropel dos animais.



E veio a repentina e necessária mudança para Mata Grande, já na idade escolar, com matrículas no Grupo Demócrito Gracindo. Mudamo-nos para o Casarão do Alto, cercado de fruteiras , comprado ao tio Antônio Rodrigues. Escassearam as nostálgicas lembranças, e eu nem pude acompanhar o final do roteiro daquele ambiente novelesco. Ficou sempre rebatendo no imaginário infantil o quadro da moça trafegando sorridente e descomprometida, e ao largo, ou à margem, sempre à espera, um possível gavião à espreita de uma donzela, em dias futuros. Pois existia uma "moça do Sítio do Gato". Somente os que compõem essa linda história familiar saberão melhor complementar o que meus olhos não mais viram, nem sequer assistiram. Reverencio aqui essa imagem da infância, guardada nos subterrâneos da memória, prestando a devida homenagem ao casal dona Evinha\Chiquinho, extensiva aos filhos e filhas que resultaram dessa união tão abençoada. 








Um comentário:

  1. A foto acima é um quadro que imortaliza um acontecer, um acaso.Um Patriarca com ar de felicidades e realizações.Ela como serva de Deus agradecida pela prole constituída.

    Começou lá atrás, no silêncio do ambiente fazendário. Uma linda e meiga jovem, sob as reservas da familia Frazão. Ele jovem e de uma estirpe honrada de João Barbosa, na feitura do trabalho e nas relações de vizinhança.

    O Casarão de Zequinha Verissimo era estratégico como roteiro de passagem para as propriedades das famílias Canuto, Frazão e tantas mais, para onde confluía o Lamarão. Do alpendre de seu Zequinha foi filmado e testemunhado o início de uma futura geração onde a nascente mais pura do sentimento humano brota. Não prescinde de heranças ou fortunas anteriores, mas sedimentada no amor e fruto do trabalho e perseverança nos ideais de uma familia estruturada.

    O mundo hodierno vive carente dessas autênticas expressões modelares.

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