A SINGULARIDADE DE UM QUARTETO DA PREFEITURA – Ubireval AlencarÉ muito comum nas cidades interioranas defrontar-se o visitante com o inusitado modo de viver de determinadas personalidades. Pela sua conformação física, segundo o modo como se portam, trabalham ou se exprimem, elas se constituem um dos modos singulares de vida, distinguindo-se do proceder normal e rotineiro das pessoas habituadas à grande cidade.O quarteto aqui referido não diz respeito à composição de membros para efeito musical. A sinfonia do modo de vida das personagens é o texto que interessa e que deverá ser posto em questão. Aproveito-me de nomes à época conhecidos por apelidos locais, hoje certamente não mais vivos, e que se tornaram quase lendas interioranas. Mas a história real de cada uma delas deve ter sido bem diferente e com certeza com muito mais interesse que as qualidades aqui apontadas.Zé Grilo, Mané Moco, Corró e (seu Bié) Sete-Bundas eram apelidos atribuídos aos lixeiros que faziam a coleta da cidade, num interior qualquer ainda de extremo subdesenvolvimento. Zé Grilo era um dos mais franzinos, de pequena estatura, boca larga e olhar esbugalhado. Mané Moco, antes de tudo meio surdo, era um dos mais ágeis no desempenho do trabalho, talvez pelo porte médio e compleição física mais forte; Corró era deficiente de um olho, muito magro e com sequelas de subnutrição; Sete-Bundas era o tipo bonachão, de traseiro reforçado, que lhe valeu o epíteto da conta do mentiroso.Tudo isso coexistiu na cidade de clima dos mais agradáveis em pleno sertão nordestino, entre as fronteiras de Alagoas, Pernambuco e Bahia.Por anos seguidos, entregaram-se à partitura de comandar a carroça de lixo, que na verdade era a metade de uma carroceria de caminhão, puxada a animal. O boi de Zé Grilo, como era conhecido pela meninada local, percorria as ruas da pequenina cidade arrecadando aqui e ali os despojos das latas. Tamanho caráter assumiu esse quarteto que até virou modinha na cidade, cujo estribilho terminava sempre na divisão dos hexassílabosA carroça do lixoparece uma zabumba,Zé Grilo, Mané MocoCorró e Sete-BundaMas, antes da coleta propriamente dita, todas as ruas eram varridas, e só posteriormente eram arrecadados os entulhos deixados por animais, crianças e adultos.Ecólogos prematuros, não se limitavam apenas à apanha do que encontravam pelas ruas, mas também tomavam a liberdade de preservar as poucas árvores que a molecada teimava em destruir. Haviam plantado aquelas árvores, por elas sentiam-se responsáveis, e por isso impediam que elas fossem destruídas gratuitamente. Havia também um efeito catalisador. Aquelas árvores serviam-lhes de abrigo durante o sol inclemente. Eram uma espécie de apaziguamento e refrigério momentâneo, nas horas de calor escaldante.O quarteto também se caracterizava por uma outra peculiaridade, que os fazia mais conhecidos, um tanto admirados, e, em determinados instantes, principalmente aos sábados, dia de feira, excelentemente aplaudidos. É que nesses dias se realizava a feira de frutas, verduras, carne e outros gêneros alimentícios. O universo dos supermercados ainda não havia adentrado aquele espaço interiorano. Em contrapartida, toda populaçãocomprimia-se na busca de angariar o suficiente para a família e na quantidade satisfatória para a duração de uma semana. Ao final da tarde, começava a limpeza grande, com a recolha dos restos de feira que muitas vezes servia, para muitos desfavorecidos, desempregados e pobres, de migalhas comestíveis.Concluídos os trabalhos, exaustos, os componentes do quarteto começavam a etapa comemorativa do dia no bar mais próximo. Afeitos ao sabor da cachaça mais forte, prosseguiam naquela bebedeira à proporção que surgia um pagante mais pródigo. Criaram esse hábito ao longo dos anos. Agora, na idade avançada, tinham nesses momentos sua rara oportunidade de desafogar mágoas e carências de outros bens que efetivamente nunca se decidiram a lutar por eles. E a cachaça ia-se repetindo em mais uma, mais outra, agora sob os auspícios de um pequeno grupo de rapazes que os instigavam. O ponto ideal dava-se quando começavam a discutir e brigar entre si. A plateia que os havia preparado para esse momento se põe a exercer seu papel influente. Fazem provocações, xingam-nos, dizem que um dos componentes havia xingado o outro, inventam mentiras a torto e a direito, de modo a que os contendores se exaltem e o litígio se instaure.Raras vezes essas discussões tiveram proporções maiores, com derramamento de sangue ou fatos similares. O mais comum nessas bebedeiras é haver troca de empurrões, tapas, xingações e depois as coisas terminavam em abraços desencontrados ou até choros catárticos, que se juntavam aos propósitos de eterna amizade. O que não seria capaz de realizar o miraculoso álcool nas mãos desses sacerdotes da vida pública? Por toda vida acompanharam esse ritual fascinante, cujo modelo foi passando de geração a geração. Por que haveriam de negar, também eles, essa prática inveterada do festim dos deuses?É chegado o momento da contagem regressiva para o retorno às suas casas. Cada um dos componentes tem seu caminho mais tortuoso. Mas a desordem mental os faz entrar em portas que não deveriam, tropeçam em batentes imaginários, e ainda deixam extravasar atos e paixões nunca antes confessados. São verdadeiras notas musicais em desacordes. A essa altura, o cortejo de moleques e desocupados de todas as idades se põe à espreita do desenrolar dos acontecimentos, ou ajudam a compor aquela cena hilariante com a algazarra de uns, assobios e vaias de outros, constituindo-se a nota dissonante, excêntrica e desejável daquela tarde.
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segunda-feira, 23 de maio de 2016
A SINGULARIDADE DE UM QUARTETO DA PREFEITURA – Ubireval Alencar
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