A Outra (a Amante) - um ser
libertário
Ubireval Alencar
"Sonhe com o que você
quiser. Vá para onde você queira ir.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida e nela só temos uma chance de fazer aquilo
que queremos.
Tenha felicidade bastante para
fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana. Eesperança
suficiente para fazê-la feliz."
(Escritora Clarice
Lispector)
Esse texto da escritora
Clarice Lispector é um bom motivo para
representação dessa figura ímpar – a Outra, a Amante , imputável
concomitantemente a ele, o Outro, o Amante – como projeto individual de uma
existência atuante. A coisa poderia parecer simplória, se comparada a questões
dogmáticas, preconceituosas, ou tabus que em público nenhuma mulher aceitaria
discutir.
O raciocínio ora esboçado
parte não dos fatídicos modos e empregos versados na net, nos papos virtuais.
Nessa configuração, são bem humorados os homens que latentemente sabem,
imaginam que Ela-amante estaria naquele horário, naquelas horas mais críticas –
os intervalos de almoço e os finais de tarde. Ganham até um paisagismo
incomparável a feitura e criatividade dos nicks em que os digitadores se personificam: casado[sic]
sozinho; casado em casa; casado sem ela; casado mas livre; casado de férias;
homem sem dona; casado mas quer
E por aí derivam os
debochados com linguagens chulas, desabonadoras da boa conversação e amizade
que a net certamente faculta aos usuários.
Mas o veio, fluxo principal
dessa argumentação não está na virtualidade, a possibilidade de, a conquista
virtual, mas na inteireza psicológica daquela que não mais pretende ou deseja
viver as formalidades sociais de casamento, concubinato, ou junções de talheres
e roupas. A Outra, Amante, vem-se desenhando como a mulher inteiramente
independente, econômica, financeira e moralmente, mas que se impõe como ser concreto,
com experiência de vida afetiva, mas deslanchada dos arreios tradicionais,
conformações e desvinculada de clichês pragmáticos.
Ela ama, dá-se, sem a
cobrança de horários; espera, aguarda a hora mais delicada do dia sem o
comprometimento arriscado do visitante; sabe compreender a ausência sem
explicação de uma promessa das cinco da tarde. Ela é expectativa, faz-se
surpresa com a chegada em atraso. A Outra quer ser a instância de paz, o
momento de refrigério e compreensão para o Amante aturdido de tarefas e
compromissos, e com amores já definidos e família constituída. A preservação do
status quo é sua maior legitimidade.
A Amante conhece os
instantes em que terá que aguardar as migalhas da mesa do prazer e que com
certeza sobram pela contingência da má ingestão num casamento em desalinho. Mas
sem que ela se torne o depósito dos maus feitos ou choradeira como se fosse o
desaguadouro de cornos do passado dele. Daí a extrema necessidade de ela ser
só. Livre de vínculos jurídicos, afeita à tomada de consciência de que o ser
visitante, amado, terá que retornar melhor, mais carinhoso e amigo dos seus
preestabelecidos.
Com esse nascente/antigo
estatuto, a Outra desenha seu traçado de escolhas que mais condigam com seu
caráter, suas afeições e feições, seu intimorato modo de viver.
Sabe que não pretende
concorrer ou interromper qualquer tipo de relacionamento anterior daquele a
quem se afeiçoou, ou por quem foi conquistada. Ausente de punições ou culpas,
vive a harmonia do ser libertário, consciente de que a vida é uma só e somente
a ela cabe as decisões do traçado de si própria. Só os candidatos virtuosos lhe
cairão na bandeja das pretensões. Ficam terminantemente excluídas
as taras de sexo mecânico, coberturas do que não tem o que fazer, ou doentios
da propagação da difamação ou reputação em ambiente de trabalho.
Por isso a mulher, Amante, a
Outra não tem pátria. Ela pousa onde o amor a encanta; ela
vive das emoções, da sensação de saber-se desejada, e espera dias, meses, anos sem fim. Porque vive o compasso da espera, enquanto tem a
certeza de que um olhar a cobrirá de satisfação, um abraço reviverá todas as
instâncias e carências antes deglutidas. Se ele promete vir às cinco horas, já
dizia analogamente a personagem raposa ao Pequeno Príncipe, então desde as
quatro horas ela, amante, já se sentirá feliz.
Na verdade, ela sabe o prenúncio do cio das horas, na aquilatação do ser
mulher .Nesse sentido ela é de extrema autenticidade, porque desconhece o ser
promíscuo, a mulher devassa. Há nela o mesmo sentido de fidelidade que mantém a
esposa, sendo ou não correspondida. No interior da Amante só cabe uma certeza –
viver a gravidez e gestação de um afeto cujo prazo limite para nascimento é
pendular. Ela oscila de um momento a outro, na aceitação das vicissitudes do
amado, com suas fragilidades, inconstâncias e endividamentos anteriores. Ela
existe? Só os condignos desse conluio
amoroso é que poderão ratificar ou contestar.
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