segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

AUGUSTO CESAR MALTA CAMPOS

Publicado no caderno especial da  GAZETA DE ALAGOAS  do dia 27 de dezembro de 2009.



Fotógrafo alagoano imortalizou o RJ

Em Mata Grande, sua cidade natal, não há ao menos uma praça que faça referência ao seu nome


POR JANAYNA ÁVILA

Augusto César Malta de Campos. Alagoano, mas quase um desconhecido em seu estado natal. Quis o destino que, ao contrário do que haviam planejado seus pais, não ingressasse na vida religiosa. Saiu do Recife rumo ao Rio de Janeiro, para tentar a sorte. E foi ela que pôs uma máquina fotográfica em seu caminho. Assim nascia o Augusto Malta que o Brasil conhece, mas que Alagoas teima em ignorar. Fotógrafo oficial da Prefeitura do Rio por mais de três décadas na primeira metade do século 20, produziu um valioso documento visual da arquitetura e do traçado urbano da então capital federal, além de registrar aspectos culturais e sociais da época, deixando um acervo composto por mais de 60 mil imagens, que o mundo inteiro valoriza. Nesta edição especial, a Gazeta celebra os 145 anos de nascimento do nosso mais ilustre fotógrafo com um apanhado detalhado de sua trajetória e com o resgate de algumas das imagens produzidas pelo homem que migrou do sertão de Alagoas para fazer história na Cidade Maravilhosa. Um personagem e tanto

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Como o sertanejo Augusto Malta venceu no Rio de Janeiro

Em diversos lugares do Brasil e do mundo, Augusto Malta dispensa apresentação. Embora sua biografia seja ainda pouco conhecida, seu nome é associado sempre à mais importante iconografia fotográfica do Rio de Janeiro na primeira metade do século 20. No entanto, em sua terra natal, Alagoas, Malta continua desconhecido. Tanto, que na cidade onde nasceu, Mata Grande, não há um espaço cultural que faça referência à memória do alagoano que, ao compreender a importância da fotografia como registro visual para a posteridade, entrou para a história do Brasil. Por essa razão, mesmo sendo dono de uma trajetória em maior parte ligada ao Rio de Janeiro, o restante do País não pode ignorar seu legado. Como se sabe, naquela época o Rio era a capital federal, centro das decisões políticas e econômicas da nação.

Mas quem foi o homem que deixou o sertão de Alagoas para morar em Olinda e, anos depois, assumiu a função de fotógrafo oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro, cargo até então inexistente no órgão?

Filho de Claudino Dias de Campos e Blandina Vieira Malta de Campos, Augusto César Malta de Campos nasceu em Mata Grande, no dia 14 de maio de 1864. Nessa época, a cidade chamava-se Paulo Afonso. Escrivão da cidade, Claudino foi pai de mais 18 filhos. Segundo pesquisa realizada pelo colecionador e escritor George Ermakoff, autor de Augusto Malta e o Rio de Janeiro: 1903-1936, o pai de Augusto escolheu-o, como era costume, para ser o sacerdote da família. Seus estudos começaram em Olinda, onde passou a residir na casa do padre Antônio Marques de Castilho, amigo dos Malta. Mas quis o destino que Augusto não seguisse a carreira religiosa. Em 1886, o padre faleceu e o rapaz, sem vocação para o sacerdócio (mais tarde, ele teria se declarado ateu), transferiu-se para o Recife, onde ingressou no exército. Mas, ao fim do cumprimento do serviço, foi dispensado.

A dispensa, embora decepcionante para Malta, foi um estímulo para que fosse embora para o Rio de Janeiro, em busca de uma carreira profissional. Foi trabalhar no comércio, como auxiliar de escrita, na Casa Leandro Martins, especializada em artigos para decoração e uma das mais tradicionais da cidade. Era 1888, época de plena efervescência republicana. No ano seguinte, já promovido a guarda-livros da loja, teria sido uma testemunha ocular da proclamação da República. Algum tempo depois, já como um conhecido profissional da fotografia, em entrevistas concedidas à imprensa carioca ele teria contado como presenciou o fato histórico: “A 15 de novembro de 1889, às 8h30 da manhã, esbaforido, entrava na casa de comércio onde trabalhava, um dos sócios gritando ‘revolução no Campo de Santana’. Não tive dúvida. Corri para ali e encontrei um grupo de artilharia em frente ao quartel general, junto às grades do jardim do Campo de Santana. À direita do grupo, próximo à Prefeitura, junto àquelas grades me coloquei. Deste ponto vi quando Deodoro chegou, vindo do lado da Rua Senador Euzébio e entrando na Praça pela Rua São Pedro com Benjamim Constant e Quintino Bocaiúva. Ambos a cavalo passavam perto de um grupo à paisana, estacionando em frente à Escola Normal, hoje Rivadávia Correia, quando Sampaio Ferraz, a quem conhecia das conferências, deu um viva à República. Pouco tempo depois alguém abria o portão do Quartel General, e Deodoro avança, ali penetrando. Qual não foi meu desapontamento ao ver surgir na Praça interna Floriano Peixoto a cavalo. ‘Lá se foi a República’ – pensei com meus botões. Não conhecia a ligação entre eles. Durou pouco, porque, logo a seguir, todas as forças saíam do quartel. Organizou-se um desfile com Deodoro à frente”.

No ano seguinte, em 1890, já instalado o novo regime, Augusto Malta regressou a Mata Grande para visitar a família, da qual fazia parte um político ilustre na história local: Euclides Vieira Malta, que governou Alagoas (além de ter sido deputado estadual, federal e senador) e era seu tio. De volta ao Rio, o alagoano trouxe dois irmãos, Alfredo e Joaquim Pópulo. Pouco tempo depois, Fernando e Teófilo, outros dois irmãos de Malta, também se transferiram para a capital federal, em busca de melhores oportunidades. E foi lá que, com uma quantia em dinheiro, fundou uma casa de secos e molhados, empreendimento que teve vida curta. Passou a vender tecidos e inovou ao visitar os clientes de bicicleta, já que os mascates da época o faziam a cavalo. Conquistou uma boa clientela até que, um dia, o destino se afirmou: em 1900, um de seus clientes propôs que ele trocasse a bicicleta numa máquina fotográfica. Encantado pelas possibilidades do novo aparelho, aceitou o negócio. Nascia ali o fotógrafo Augusto Malta.

Sem o meio de transporte, o ex-mascate foi obrigado a ir até a casa dos clientes a pé. Assim, aproveitava também para fotografar a paisagem carioca, ensaiando a carreira futura. Em 1903, Malta foi apresentado ao prefeito do Rio, Francisco Pereira Passos, por intermédio do empreiteiro Antônio Alves da Silva Júnior, que já sabia da necessidade que o órgão tinha de um profissional que pudesse registrar as obras de transformação da capital federal. Após ver as fotografias produzidas pelo alagoano, Pereira Passos convidou-o para trabalhar na Prefeitura.

Embora estivesse indo muito bem no comércio de tecidos, Malta não resistiu ao convite. A vocação falou mais alto. Em junho do mesmo ano, foi criado o cargo de fotógrafo. Era o começo de uma vida dedicada à fotografia.

Para complementar a renda, já que seu salário só era superior ao de um contínuo, o mais baixo pago pela Prefeitura, Augusto Malta passou a fazer também trabalhos particulares, como fotografias de família e de eventos. De olho nas novidades, viu que os cartões-postais conquistavam pessoas no mundo inteiro e apressou-se para editar os próprios, tal como Marc Ferrez havia feito, além de ceder algumas imagens para a Sociedade Cartophila Emanuel Hermann, criada para incentivar o colecionismo de cartões. Malta entendia que, assim, ajudava a popularizar a fotografia.

Ao mesmo tempo em que seguia apostando na nova (e definitiva) carreira, Malta formava também sua própria família. Quando esteve em Alagoas, em 1890, aproximou-se da prima, a conterrânea Laura Oliveira Campos, com quem se casou e, anos depois, teve cinco filhos, sendo quatro mulheres e um homem: Luthgardes, Arethusa, Callisthene, Aristocléa e Aristógiton.

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REVISITANDO

Em setembro de 2005, a Gazeta visitou a trajetória do fotógrafo Augusto Malta em matéria do repórter Fernando Coelho. Na época, já destacávamos o fato de que em Alagoas, onde nasceu, ele permanecia desconhecido. Embora tivesse uma obra voltada à documentação da cidade do Rio de Janeiro, o fotógrafo é considerado um pioneiro do fotojornalismo brasileiro e, também por essa razão, não pode ser ignorado. Cabe ao Museu da Imagem e do Som de Alagoas (Misa) a tarefa de dar ao alagoano a atenção e o valor que ele merece.

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Malta e a empreitada modernizadora de Pereira Passos

Assim como havia sido testemunha ocular da proclamação da República, Augusto Malta também foi um espectador privilegiado da modernização empreendida por Pereira Passos. Como era inevitável, atuou no processo de desapropriação de muitos imóveis, já que novas ruas e avenidas precisaram ser abertas. Suas imagens auxiliavam a Prefeitura do Rio na indenização dos proprietários, evitando, muitas vezes, que estes enganassem o órgão – como as obras corriam em ritmo acelerado, muitas vezes os valores eram pagos já com os imóveis demolidos, o que permitia que alguns atribuíssem às construções valores irreais, inventando sobrados onde antes existiam construções de um piso só. As fotos de Malta eram a prova incontestável da realidade.

Por causa disso, George Ermakoff relata em seu livro que não faltou quem ameaçasse o fotógrafo, já que seu trabalho trazia insatisfação aos proprietários. Malta, porém, era esperto. Para disfarçar sua verdadeira missão, convidava crianças para serem fotografadas na frente dos imóveis. Em depoimento ao jornal O Globo, no dia 1º de agosto de 1936, sem esconder a admiração por Pereira Passos ele falou sobre o assunto: “Uma obra como aquela, um homem como aquele, não mereciam a falta de respeito de uma ‘tapeação’. Entusiasmado, dediquei-me de corpo e alma à nova função. Diante do nada de fotografia que eu sabia, esforcei-me por conquistar o muito que agora sei. Embora uma função secundária e lateral, eu me orgulhava em dar a minha cooperação para a glória da grande obra. Ela precisava de uma documentação fiel e indiscutível, que só as boas fotografias podiam proporcionar. [...] De mala a tiracolo, num tempo em que só havia máquinas do tamanho de um bonde, passei horas e horas a vaguear pela cidade, batendo instantâneos de quanto casebre encontrava pedindo picareta. Já estava ficando conhecido nesse papel e não poucas vezes escapei de boas, porque os proprietários dos imóveis a condenar, das vendas, botequins e quiosques da cidade, vinham para cima de mim querendo tirar desforras. Houve ocasiões em que me custou um pouco livrar o corpo e salvar a máquina das ofensivas”.

Foi durante os 33 anos em que trabalhou para a Prefeitura do Rio que Augusto Malta produziu sua obra mais importante, relacionada, sobretudo, à memória da cidade. Desse período, estima-se que existam de 30 mil a 60 mil chapas. A fotografia no início do século 20 era completamente diferente do que conhecemos hoje: seu equipamento era composto por uma máquina fotográfica robusta, um tripé e um flash de magnésio, além de uma mala com um pesado estoque de chapas de negativos de vidro. O fotógrafo não trabalhava com nenhum ajudante e carregava, sozinho, todo o material de trabalho, utilizando, como transporte, o bonde.

Em 1925, um acidente com o flash quase lhe arranca o dedo, que ficou dilacerado. Foi preciso que os médicos fizessem uma cirurgia religando os tendões, procedimento raro na época. O mais comum era mesmo a amputação. Nesse caso, foi o prestígio de Augusto Malta, já bastante conhecido no Rio, que o livrou de perder o dedo.

Embora seu trabalho na Prefeitura fosse basicamente ligado às obras de reurbanização do Rio, os temas fotografados por Malta eram variados. Ele registrou os carnavais cariocas, a paisagem da cidade (sob diversos ângulos), personalidades políticas e culturais, as praias, os hábitos e as vestimentas dos habitantes, as revoltas populares, as prostitutas, os teatros, favelas, cortiços, igrejas e até cemitérios. Nada escapava ao seu olhar. “Malta deixou registrado um período bastante extenso da história da cidade que foi muito importante porque foi, praticamente, o único que deixou isso efetivamente registrado. Existem fotos esporádicas tanto de profissionais quanto de amadores, mas nada tão consistente como o trabalho dele, que foi progressivo. E como ele datava as imagens, é possível fazer uma progressão na linha do tempo. Dá para saber o que acontecia em termos de vestimenta, comércio, hábitos e costumes da cidade. Parecia que Augusto Malta tinha chamado a ele a responsabilidade de deixar para a posteridade as informações pictóricas da época”, observa George Ermakoff.

Em 1906, porém, com a saída de Pereira Passos da Prefeitura, o órgão passou a ser comandado por Francisco de Souza Aguiar, que fazia oposição ao prefeito anterior. De modo que Malta sofreu perseguição e seu cargo foi extinto. O fotógrafo foi transferido para a Secretaria de Obras, perdendo prestígio e autonomia. Descontente com a situação, em 1910 fez um requerimento no qual pediu a contagem do tempo para a aposentadoria. Ainda assim, continuou trabalhando por conta própria. Três anos depois, o prefeito Bento Ribeiro, sucessor de Souza Aguiar, recriou o cargo de fotógrafo e reconduziu Malta à função, dando-lhe o status de antes.

Entre as dezenas de personalidades ilustres imortalizadas pelas lentes de Augusto Malta estão, além de Pereira Passos, o presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, sua esposa, a caricaturista Nair de Teffé, o Barão de Rio Branco, Joaquim Nabuco, Oswaldo Cruz e Rui Barbosa.

Seu último dia de serviço na Prefeitura foi em 25 de agosto de 1938. Curiosamente, foi substituído pelo próprio filho, Aristógiton, que anos depois foi auxiliado pelo irmão Uriel, também fotógrafo. Inclusive foi Uriel quem, algum tempo mais tarde, administraria o arquivo precioso deixado pelo pai.

“DEVO, NÃO NEGO”

Um dos fatos mais curiosos da biografia de Augusto Malta refere-se às dívidas contraídas pelo fotógrafo. Após a aposentadoria, aproveitando o fato de ser bastante conhecido na cidade, o alagoano passou a se dedicar com afinco a trabalhos particulares. Para adquirir material fotográfico, ele recorria ao tradicional fiado, mas nem sempre tinha condições de realizar os pagamentos em dia. Em 1938, a Casa Bertea, uma das mais importantes lojas especializadas em artigos fotográficos na cidade, teria enviado uma carta-cobrança a Malta, comunicando-lhe de débitos referentes a compras realizadas em 1934 e propondo o parcelamento da dívida em suaves prestações. Malta aceitou de imediato e, de forma honesta, ainda acrescentou ao valor cobrado outros referentes a compras anteriores ao período mencionado. A dívida foi quitada 13 anos depois, em 1947. A filha do fotógrafo, Amaltéa Malta, em entrevista ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 20 de março de 1980, teria comentado a preocupação do pai com os pagamentos: “Papai morreu pobre, mas não deixou dívidas.”

Além da fotografia ser uma atividade mal remunerada, em parte as dificuldades financeiras de Malta estavam ligadas a uma tragédia familiar. Em 1906, Laura, a primeira esposa do fotógrafo, faleceu e ele passou a viver com Celina Augusta, ex-babá da família. Com ela, teve quatro filhos: Dirce, Eglé, Uriel e Amaltéa. Mas as quatro filhas que teve com Laura – Luthgardes, Arethusa, Callisthene e Aristocléa – faleceram vítimas de tuberculose ainda adolescentes. As sucessivas despesas com o tratamento de saúde e com o funeral das filhas, além da família numerosa (eram cinco filhos, já que, do primeiro casamento, havia ficado o pequeno Aristógiton), teriam exaurido as economias dos Malta e abatido o pai que, carinhosamente, costumava fotografar as crianças.

Aos poucos, com os filhos já encaminhados, o fotógrafo passou a comercializar seu imenso acervo, classificado pela imprensa carioca como “o arquivo milionário”. Mas Malta estava longe de ser rico. Negociou muitas imagens (em séries temáticas) com instituições, a exemplo da Biblioteca Nacional, e vendia fotografias avulsas para colecionadores ou interessados. “Quando o Malta era vivo as imagens dele valiam pouco. Era o equivalente a R$ 20 por foto. Mas depois que ele morreu e depois que todo o acervo foi vendido para o Estado e, como rareou o material no mercado, o interesse pela iconografia do Rio foi crescendo ao longo do tempo”, diz Ermakoff.

Morando em Niterói, de onde viajava para o Rio na barca que fazia a travessia, Augusto Malta continuou, até o fim da vida, a atender a quem lhe procurasse em busca de imagens do Rio antigo. Mesmo idoso, também não se furtava de passear, a pé, pelas ruas da cidade que ele viu transformar-se, por completo, no início do século 20. “Ele andava a cidade toda, conhecia tudo, todos os detalhes. O prazer dele era vir ao Rio, com uma pasta cheia de fotografias”, recorda Amaltéa.

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Por trás do fotógrafo, um exímio arquivista e um homem reservado

Já idoso e ciente de que o arquivo era sua única fortuna, Augusto Malta chamou a filha Amaltéa e o amigo Noronha Santos, arquivista da Prefeitura do Rio e pessoa de sua extrema confiança, para separar o que era seu do que pertencia à Prefeitura. A tarefa, contou Amaltéa, não foi tão difícil, pois o fotógrafo era extremamente organizado. Anotava, sobre as delicadas chapas de vidro que eram o negativo da época, temas e datas, identificando-as com o número de referência que constava no caderno onde havia informações detalhadas sobre as fotos. Algumas placas traziam pequenos comentários, como em fotografias de casas em ruínas, em que, curiosamente, escrevia: “Está precisando de picareta”.

Sobre o aspecto pessoal, Amaltéa contou, no depoimento gravado no MIS do Rio de Janeiro, que Malta era reservado. “Papai era muito discreto. Também não falava sobre o passado. Costumava dizer que não gostava de relembrar o que passou. Era fechado, inclusive com os filhos. Mas apesar de sair cedo e de ser muito ocupado, no final do mês queria saber as notas dos filhos na escola. Era uma preocupação dele”, revelou.

Embora não tenha concluído os estudos, segundo informações da filha, Malta gostava de ler, especialmente sobre astronomia. Revistas francesas também estavam entre suas leituras preferidas. “Era discreto até no voto. Ele compareceu às urnas até o fim da vida, mas sempre repetia que o voto era secreto”, completou. Habituado a trabalhar desde cedo, não abria mão, mesmo cansado, de, ao chegar em casa, à noite, conferir primeiro o trabalho que havia realizado e, só depois, relaxar. Nos dias atuais, diríamos que era um “workaholic”. A fotografia, muitas vezes, parecia estar à frente da família.

A biografia escrita por George Ermakoff traz um dado muito curioso sobre a personalidade do alagoano: o de que, apesar de trabalhar muito, não abria mão da elegância. Por conta disso, teria lançado moda nos anos 30, o que acabou sendo tema de uma pequena matéria publicada no jornal O Globo, em 1º de agosto de 1936: “Envidraçando esses olhos expressivos, parece que se inauguravam, então no Rio, os óculos de aro de tartaruga, guarnecidos por dois discos de vidro inverossimilmente grandes arregalando ainda mais os dois olhos que envidraçavam. Foi realmente Augusto Malta quem inaugurou esse tipo de óculos, hoje tão vulgar no Rio de Janeiro. [...] Augusto Malta, por exotismo, decidiu usá-los e assim os lançou audaciosamente, causando escândalo, com eles, nas ruas recatadas da cidade colonial e pondo em destaque a sua cabeça enérgica e voluntariosa de homem de ação. Sobre essa cabeça, o telhado permanente de um panamá de fita preta. Sempre sem colete, ao pescoço esvoaçava e ainda esvoaça como borboleta uma gravata de laço preto”.

A MORTE

Apesar de ter declarado algumas vezes que chegaria aos 120 anos, Augusto César Malta de Campos faleceu no dia 30 de junho de 1957, aos 93, de insuficiência cardíaca. Está sepultado no Cemitério do Caju, no Rio. Curiosamente, apesar de se dizer ateu, foi enterrado com vestimentas da Ordem Terceira da Penitência, com a qual contribuiu financeiramente durante muitos anos. Quando faleceu, tinha perdido a primeira esposa, todos os cinco filhos do primeiro casamento (Aristógiton teria falecido de cirrose), e uma das filhas do segundo, Eglé. Amaltéa comentou o velório do pai: “Quando cheguei lá, vi que ele vestia uma espécie de toga, que parecia uma vestimenta de padre. Quando vi deu vontade de rir, mas o momento não permitia. Era engraçado porque era irônico. Ele, que era ateu, vestido daquele jeito”. A filha ficou com a responsabilidade de cuidar da mãe, Celina, que carregava consigo o arquivo deixado pelo marido até o momento em que a família precisou vendê-lo.

No testamento de Malta, 50% de seu legado eram da viúva e os 50% restantes deveriam ser divididos entre os filhos. Em 1964, o arquivo foi vendido ao Banco do Estado da Guanabara, que o revendeu ao Governo do Estado da Guanabara. Com isso, a maior parte das imagens do Rio produzidas pelo alagoano foi transferida para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS), onde integra a Coleção Augusto Malta. Além do MIS, outras instituições possuem fotos de Augusto Malta, como o Ministério da Fazenda, a Biblioteca Nacional, o Ministério da Educação, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Museu Histórico Nacional e diversas coleções particulares. Em 1980, Amaltéa lamentou a dispersão do acervo: “Se dependesse de mim, não espalharia essas fotos. Manteria a unidade”.

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Nos anos 50, o retorno a Alagoas e a ausência de qualquer registro

Em 1951, quando tinha 87 anos, Augusto Malta voltou a Alagoas. A prova da visita à terra natal está numa carta encontrada por George Ermakoff nos arquivos do MIS/RJ: “Era uma carta de uma sobrinha. Ele fotografou Alagoas e, como não conhecia mais o estado, pediu ajuda a ela. Na carta, a sobrinha se desculpava pela demora da resposta e dizia que enviava informações sobre os locais que ele havia registrado. Pela carta, ficou claro que Malta fotografou Alagoas, mas não sabia descrever que locais eram aqueles. Ela escreveu dando o que seriam as legendas das fotos”, revela. Mas antes mesmo de ver a carta, Ermakoff diz que já sabia da vinda de Malta a Alagoas – certeza que se deu por meio do contato com as dezenas de documentos examinados durante a pesquisa para a produção do livro. “Quando se manuseia muitos documentos acaba-se achando ligação de um documento com outro. Agora, onde foram parar essas fotos feitas em Alagoas, eu não sei. Nunca as encontrei”, diz. A carta, segundo o pesquisador, está assinada por Cordélia e foi escrita no dia do aniversário de Malta (veja transcrição).

A Gazeta entrou em contato com a Prefeitura Municipal de Mata Grande para saber se há, na cidade, alguma referência à vida ou à obra do filho ilustre. A secretária de Educação e Cultura do município, Maria Francisca dos Santos, disse que não teria condições de saber e que “precisaria de um tempo para responder a questão”. Perguntamos se não havia ao menos uma escola na localidade com o nome de Augusto Malta. “Escola eu sei que não tem”, disse. Indagada se teria conhecimento de quem tinha sido Augusto Malta, a secretária respondeu objetivamente: “Não”.

COLEÇÃO ESPECIAL

O acervo do fotógrafo adquirido pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro recebeu o nome de “Coleção Augusto Malta” e é composto por 20 mil fotos, 20 álbuns fotográficos com imagens selecionadas por Malta, 2.400 negativos de vidro e 115 negativos panorâmicos, além de 167 documentos, como correspondências e cadernos de notas. Desse acervo, 11.500 imagens estão digitalizadas. A instituição estadual trabalha para concluir o processo de digitalização de todo o material. Apenas os negativos de vidro e os panorâmicos não estão disponíveis para consulta, devido à fragilidade do material.

Em entrevista à Gazeta, a coordenadora do setor de iconografia da instituição, Roberta Zanatta, falou sobre o valor da coleção: “É de grande importância não só para o MIS, mas para a história do Rio de Janeiro e para a história nacional. São imagens que ilustram grandes transformações urbanistas, como as demolições e a abertura de ruas e avenidas até hoje importantes para a cidade, além de aspectos sociais. Sem dúvida, é nossa coleção iconográfica mais importante e, por essa razão, a mais pesquisada”, observa.

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A CARTA DA SOBRINHA

Maceió, 14 de maio de 1951



Caro titio Augusto:



Em virtude do acúmulo de aulas e outros afazeres, só agora estou lhe enviando os nomes das fotografias de acordo com os números, e apresentando-lhe minhas desculpas por não ter enviado antes.

Aproveito o ensejo para enviar-lhe também um grande abraço pela data de hoje, desejando-lhe muita paz de espírito e um contentamento perfeito, pois a meu ver, é nisto que se resume a felicidade terrena.

Recomendo-me aos que lhe são caros, e especialmente a querida titia Celina.



Sinceramente,

Sua sobrinha e amiga que muito lhe quer e admira,

Cordélia

* A transcrição da carta foi feita pelo pesquisador George Ermakoff, que teve acesso ao documento no arquivo do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro

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Da paixão pelo Rio antigo à biografia (desvendada) de Malta

Nascido na China, registrado como russo (origem de sua família) e radicado no Rio de Janeiro durante quase a vida toda, o economista, ex-executivo e hoje proprietário da editora que leva o seu nome George Ermakoff fez da paixão pela fotografia uma nova profissão. Aos 60 anos e após ter comandado instituições financeiras e grandes empresas brasileiras, vem se dedicando, desde 2003, à edição de obras especializadas em fotografia brasileira e em outros temas, como literatura e história. Este ano, a editora publicou Augusto Malta e o Rio de Janeiro: 1903-1936, que reúne, pela primeira vez, não apenas o acervo referente à reforma promovida na gestão Pereira Passos, mas também fotos do carnaval carioca, das praias e das mulheres. Uma biografia detalhada de Malta, escrita pelo próprio George Ermakoff, que durante meses fez um minucioso trabalho de investigação, também inédita na bibliografia já dedicada ao fotógrafo alagoano.

O contato do editor com a obra de Malta se deu através de seu hobby: colecionar fotografias antigas. “Sempre tive interesse pela temática do Rio antigo. Em função disso, eu comecei a ter contato com a obra de Malta primeiramente através de cartões-postais. No Rio, o Malta sempre teve prestígio, um nome acima dos outros nomes da época dele. Foi o grande fotógrafo do Rio de Janeiro do início do século 20 até os anos 40 e foi a pessoa que, efetivamente, registrou a evolução da cidade. Nós tivemos muitos fotógrafos no Rio de Janeiro nesse período, mas que, ou eram de estúdio ou faziam fotos comerciais exclusivamente para cartões-postais ou para venda de positivos em tamanho maior. Já o Malta foi uma pessoa que conjugou fotografia de obras, que era a função principal dele, com a vida social do Rio de Janeiro. Ele é extremamente importante, como Marc Ferrez foi importante nas três últimas décadas do século 19”, declara.

O projeto surgiu quando Ermakoff percebeu que todos os livros dedicados à obra de Malta enfocavam apenas a reforma urbana do Rio: “O Malta já mereceu diversos livros, basicamente livros patrocinados pela prefeitura, mas sempre se destacou a inauguração de escolas, obras, visitas de prefeitos e demolições. Além disso, a vida pessoal dele nunca foi explorada. Nunca. Mesmo havendo filhos vivos na época em que essas publicações foram produzidas”.

Até na capa do livro o editor e colecionador foi fiel à ideia de realizar um projeto inédito sobre o fotógrafo. Ao invés da imagem de ruas e avenidas da Cidade Maravilhosa, o destaque foi um corso – o tradicional desfile em carro aberto que invadia, até a primeira metade do século 20, as ruas do Rio durante o carnaval. Ao fundo, o Pão de Açúcar, um dos principais ícones da cidade.

Para realizar a pesquisa biográfica, que levou cerca de um ano, George Ermakoff recorreu à terceira geração, no caso, os netos do fotógrafo alagoano. “Eles conhecem alguns detalhes da vida de Malta, mas não os conhecem tão profundamente como os filhos conheceram. Além disso, ele morava em Niterói e os netos moravam no Rio. Então tinha a Baía de Guanabara entre eles. Acabei pegando um pouquinho de um neto, um pouquinho de outro, e somei tudo isso à pesquisa de documentos, de cartas que eles tinham guardado. Fui montando um mosaico”, explica. O livro traz aspectos diferenciados da vida do fotógrafo Augusto Malta, percorrendo do seu nascimento em Mata Grande, no sertão alagoano, à morte no Rio de Janeiro – a mesma cidade onde ele construiu uma trajetória das mais marcantes na história da fotografia brasileira.

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CURIOSIDADES

• Augusto Malta foi um dos pioneiros da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ostentando, orgulhoso, uma carteira de jornalista.

• O Barão de Rio Branco deixou que Malta o fotografasse em diversos ângulos, inclusive de costas, seguindo o conselho do escultor Rodolfo Bernardelli, que atentou para a importância de se registrar até onde ia a calva do barão, caso se planejasse produzir, no futuro, uma estátua do diplomata.

• O fotógrafo adotou como regra dar nomes de origem grega aos seus filhos: Luthgardes, Arethusa, Callisthene, Aristocléa, Aristógiton, Dirce, Eglé, Uriel e Amaltéa.

• Em 1910, quando havia requerido contagem de tempo de serviço para se aposentar da Prefeitura, Malta criou o Centro Fotográfico de Propaganda no Brasil.

• A relação com Pereira Passos não era apenas profissional. O prefeito foi seu amigo e padrinho de um de seus filhos.

• O fotógrafo alagoano enviava, com regularidade, fotografias em tamanho postal para Oswaldo Aranha, embaixador do Brasil em Washington (EUA). Um dia, o embaixador, comovido com a remessa de imagens do Rio, escreveu-lhe perguntando se ele queria algo de presente de lá. Malta enviou outra carta onde pedia uma máquina fotográfica Leica, de fabricação alemã e uma das mais caras do mercado.

• Segundo informações baseadas em artigo publicado na imprensa e arquivado no MIS/RJ, um dos hábitos de Malta era tomar banho de mar diariamente.

• Quando o acervo foi vendido, em 1964, durante o transporte das dezenas de caixas contendo o material, muitas não foram manuseadas com cuidado pela equipe responsável pela transferência. Vários negativos de vidro foram quebrados.

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A carioca que seguiu a carreira do bisavô

Ela não conheceu o bisavô, mas herdou dele o gosto pela fotografia. Aos 34 anos, a carioca Anna Gabriela Malta, neta de Aristógiton, filho do primeiro casamento de Malta com Laura, sua prima, e filha de Mauro Malta, neto do fotógrafo, apaixonou-se pela obra deixada pelo bisavô assim que compreendeu a importância e a dedicação do alagoano ao Rio de Janeiro. “Quando se pensa em Rio de Janeiro no início do século 20, vêem logo à mente as imagens do velho Malta. Ele não apenas registrou a grande reforma urbanística da cidade, mas fez o que pode se chamar da primeira crônica fotográfica do carioca”, diz, em entrevista à Gazeta, do Rio, onde mora.

Para ela, a obra do bisavô é essencial para o Rio de Janeiro: “O que seria do presente, se não sabemos quem fomos no passado? O trabalho do Augusto é essencial para a memória da cidade e principalmente como fator motivador para transformar o presente. O Rio de Malta era uma cidade que se dispunha a ser vivida pelo cidadão, que ocupava as ruas sem medo. Cada imagem do velho Malta é um lembrete de como a cidade é maravilhosa e de como podemos aproveitá-la”, afirma.

Embora Aristógiton, o avô de Gabriela, tenha falecido aos 50 anos, ele também herdou do pai o talento para a fotografia, sendo, inclusive, seu assistente e, mais tarde, substituto na Prefeitura do Rio. Representada por Anna Gabriela, a família dedica-se, agora, a lutar pelo reconhecimento da obra do filho de Augusto Malta: “Como a fotografia foi uma herança passada de pai para o filho, mas que o Aristógition, devido à sua morte precoce, não teve tempo suficiente para expor, a família está envolvida num projeto para que o trabalho do filho também seja reconhecido. Temos uma coleção de negativos panorâmicos e estamos fazendo um estudo junto às instituições públicas para levantar toda a obra dele. O Aristógiton aprendeu a fotografar com o pai, mas, ao mesmo tempo, sofreu com a sombra dele, que teve o trabalho reconhecido ainda em vida. Com esse projeto, queremos trazer à luz o trabalho do meu avô, Aristógiton. O projeto envolve a produção de um livro e uma exposição”, revela.

Segundo a bisneta de Augusto Malta, visitar Alagoas já está nos seus planos. “Pretendo estar em Alagoas em breve, até porque a minha bisavó, Laura, também era alagoana. Diz a lenda familiar que eles eram primos que se apaixonaram e que vieram morar no Rio porque o pai do Augusto tinha resolvido que ele seria padre”, diz.

Ao ser informada de que em Mata Grande, cidade natal de Augusto Malta, seu nome não é nem mesmo conhecido, a fotógrafa lamentou: “É uma pena que a cidade não reconheça o trabalho do Augusto Malta, mas, em compensação, a cidade do Rio de Janeiro abraçou o alagoano e talvez alguns cariocas nem mesmo saibam que ele não era carioca”.

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SERVIÇO

Título: Augusto Malta e o Rio de Janeiro: 1903-1936

Autor: George Ermakoff

Editora: G. Ermakoff Casa Editorial

Preço: R$ 145 (288 págs.)

Onde encontrar: www.ermakoff.com.br

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