terça-feira, 14 de novembro de 2017

A TRANSPOSIÇÃO


A transposição, um engodo, por Rubens Vaz da Costa



Na área denominada Polígono das Secas, no Nordeste, ocorrem secas imprevisíveis de periodicidade variável. Quando se abate uma seca sobre o Polígono, a pluviosidade não é suficiente para atender às necessidades das pessoas e dos rebanhos, ao desenvolvimento e frutificação das lavouras e a formar estoques de água necessários até próxima estação chuvosa. Instala-se uma crise de emprego, com os agricultores sem trabalho suficiente e, em seguida, uma crise de produção pela frustração de colheitas. Torna-se necessária ajuda assistencial aos pequenos lavradores e seus familiares.

Depois da seca de 1877, que causou milhares de mortes, o Governo buscou meios para resolver o problema. Em 1909 foi criada a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) que realizou importante trabalho de pesquisa, de construção de estradas de rodagem e carroçáveis para facilitar o acesso às vítimas das secas, bem como de açudes para armazenar água, que atendessem às necessidades das pessoas, dos animais e da agricultura.

Na década de 1950, o Governo federal adotou uma nova política para o Nordeste. A construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso, a criação da Sudene e do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), a transformação da Ifocs em Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) entre outras, constituiriam elenco de medidas voltadas para o desenvolvimento econômico da região. Na Mensagem 363 ao Congresso Nacional propondo a criação do BNB, e definindo a nova política que substituiu a “solução hídrica” por um programa de desenvolvimento regional o Presidente Vargas afirmou: “A política federal, no sentido de defender das secas as vastas regiões do Nordeste e do Leste Setentrional, a elas sujeitas periodicamente, e de integrar tais regiões na economia moderna, requer uma revisão, com o aperfeiçoamento quando não a superação dos métodos tradicionais.

O próprio título de “obras contra as secas” expressa uma limitação, focalizando o problema sobretudo pelo ângulo de obras de engenharia. É tempo de, à luz de experiência passada e da moderna técnica de planejamento regional, imprimir ao estudo e solução do problema uma definida diretriz econômico-social”.

A ideia da transposição de água dos rios Tocantins e São Francisco é antiga. O primeiro projeto foi apresentado pelo engenheiro José Reinaldo Carneiro Tavares, então diretor-geral do Departamento Nacional de Obras de Saneamento e depois governador do Maranhão, previa a transposição de 300 metros cúbicos por segundo de água do São Francisco para as bacias ao norte do rio. Na qualidade de presidente da Chesf, me opus tenazmente ao projeto cuja execução reduziria a geração de eletricidade em 1000 MW, o equivalente à potência da usina de Sobradinho. A ideia foi arquivada, mas ressuscitou anos depois, com o governador Aluísio Alves, do Rio Grande do Norte, por inspiração do embaixador aposentado Vilar de Queiroz. Ficou no limbo até ser resgatada e aprovada pelo presidente Lula.

O projeto atual, de dimensões bem menores, tem objetivo semelhante ao anterior. Prevê a retirada de 26 metros cúbicos por segundo, o que não criaria problema sério para a geração de eletricidade pela Chesf. Mas quando a usina de Sobradinho estiver “cheia, e somente nesta situação, o volume captado será ampliado para até 127 metros cúbicos por segundo”. É aqui que está o engodo. As tomadas de água, canais, estações elevadoras, lagos de retenção terão que ser construídos com capacidade para o total de 127m3/s; 80% do projeto ficariam ociosos durante os períodos secos do rio! Séries históricas mostram a periodicidade do rio. Período seco 1932-1941, período úmido 1942-1950, período seco 1953-1956, período alterado 1960-1970, período seco 1971-1977 e mais recentemente período seco 2001-2004. O Conselho da Bacia Hidrológica do Rio São Francisco vetou a segunda parte do projeto, aprovando apenas a primeira, com a restrição de que a água transposta seja utilizada apenas para “consumo humano e dessedentação animal”.

Mas que acontecerá quando voltar um período seco e o sistema já puder bombear o máximo de 127m3/s e os agricultores e outros empresários tiverem feito investimentos em suas propriedades, no aumento dos rebanhos, no comércio e na indústria? O Governo não resistirá à pressão deles e a dos políticos, todos insistindo para que seja mantido o fluxo de 127m3/s. Fica evidente o engodo de apresentar uma proposta aparentemente palatável quando na realidade o bombeamento de 127m3/s será permanente e não transitório, comprometendo seriamente a capacidade geradora da Chesf, agravada pelo alto consumo de eletricidade das estações elevatórias de água, aumentando as importações de energia cara do Norte.

Estaremos voltando à solução hídrica dos primórdios do século passado? As empreiteiras e os escritórios de projeto aplaudem. Nós, contribuintes, pagaremos o pato.
* Economista.

Publicado originalmente em Folha de Pernambuco, 26/09/2005


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