"AQUI JAZ A ALBATROZ
NEGRA DO SERTÃO". Era o epitáfio que intitulava a tumba onde iria repousar
a figura folclórica que marcou época na longínqua e memorável Mata Grande.
Velhos amigos se dirigiam ao local irrecusável, acompanhando os despojos do
cancioneiro infalível, e que agora pede licença para descansar.
Coisa muito bonita de se
ver, ainda hoje, pelos interiores tardios, aquele contingente humano, a pé,
prestando as últimas homenagens ao amigo que se despede. Há sempre um interesse
maior de cada acompanhante de chegar até à alça do caixão e poder carregar o
esquife movediço. É como se fosse, não apenas o tributo mais espontâneo de
solidariedade, mas um tipo de prestação, a curto ou longo prazo, da futura
dívida a contrair junto à comunidade.
Os homens se aprestam em
cumprir essa tarefa, enquanto as
mulheres vêm mais atrás, com flores e grinaldas. Como em tantas outras coisas,
o machismo interiorano aqui se traveste de um cavalheirismo louvável. Nesse
dia, os homens põem sua indumentária mais nobre, enquanto as mulheres se cobrem
com a palidez do cinza ou tonalidade próxima, numa analogia profunda com o
sentimento religioso da paixão, da dor. Aqueles (as) que a longevidade impede a
locomoção debruçam-se por sobre os beirais das janelas, ou aguardam sentados em
antigas cadeiras, à soleira da porta, perscrutando o sinal do embarque
definitivo.
À medida que a procissão
fúnebre andava, eram relembradas as longas asas com que a albatroz negra
sobrevoava as calçadas da tão desgastada cidade. Muitos pés fizeram caminhada a
partir dali, levantaram voo bem alto, mas poucos se lembraram de recuperá-la.
As compridas canelas do conhecido TEMISTO trambicavam igual a urubu cangueiro
acossado pelas baleadas da meninada. Dois metros e lá vai pedrada era a altura
imponente daquela criatura imperial. Parecia relíquia da época áurea.
O queixo atirado, beiço derreado pelo peso do
imutável cigarro de palha, a dentuça transparecendo os resquícios da nicotina
acumulada, lá se vai a ave duradoura do sertão, com seus quase noventa anos de
idade, guardando a sete chaves o laço enigmático da intimidade.
Logo cedinho, Temístocles
espreguiçava a última noite indormida, quando se dera a mais um recital de poemas, entremeado de canções
langorosas. Do bar de Noca ao de Dinô, segue aquele ritual diário de um copo
aqui, uma garrafa ali. Sempre a insubstituível pinga da braba. Pitu ou Serra
Grande. Seresteiro da noite, criara o hábito de longa data, quando maloqueirava
pelos sítios Gato e Marrecas. A boemia sempre foi o atrativo indomável.
Enrolara caboclas e mais caboclas desprevenidas, em noitadas de furdunço.
Conseguira sair-se bem em meio a facadas, tiros de rompante, fugas
mirabolantes. Era a peça indispensável em
qualquer farra, casamento, ou arruaça.
Atento a todo fato local,
discutia da matéria literária, política à matéria filosófica. Sabia de cor
versos e mais versos de Augusto dos Anjos, de Castro Alves. Recitava-os nos
intervalos das canções lânguidas, sempre acompanhado de um violão. Não mudava
os poetas nem as canções. Orestes Barbosa, Noel Rosa eram seus cancioneiros
prediletos. Vicente Celestino só era invocado uma única vez na noite, quando os
efeitos do álcool o deixavam além de suas expectativas.
O Temisto, vulgarmente
conhecido, tornara-se um solteirão inveterado, após alguns anos de casado, e
vários filhos espalhados entre várias mulheres. Efetivamente, só conhecia dois,
aos quais respondia a bênção diária com o "Deus te abotoe". Era a
figura apresentável à curiosidade de qualquer visitante. Na companhia do mocotó
de porco, na discussão acalorada sobre política, na confidência do último crime
praticado, ali estava o amigo e confessor profano, dando sua palavra sugestiva,
com o olhar oblíquo. Nessas horas, não parecia o gigante físico que era. Dobrava-se
cautelosamente até o confidente e acomodava os enormes braços nas pernas
desengonçadas. Quem chegasse por perto sabia que se tratava de colóquio
sigiloso. E assim arquivou, ano a ano, a delação de muitos fatos e crimes
jamais suspeitos. Quando se tratava de zombaria ou piada imprópria, também se
privava com uma única gargalhada desregrada, que se juntava à tosse pigarrenta
e de escarro estridente.
Compensava, nesses gestos
solidários, a solidão que construíra, tempos atrás, pelo descaso que proporcionara
aos que lhe eram íntimos. Não culpara a vida nem ninguém, e se julgava de posse
de um destino safado com quem brigaria até o fim. Vivia como se fosse uma
espécie de inventário e pensamento crítico do arquivo temporal. E é chegado o
momento de sujeitar-se ao julgamento da História. Era essa uma das reflexões
feitas pelo último orador, no momento em que o ataúde descia as paredes
sepulcrais. Temístocles havia encontrado na cidadezinha fecunda o prato feito
para o seu gosto. Ali havia um celeiro de improvisados seresteiros. Cada um
queria primar pela sua reputação. Mas o tempo foi passando, e cada seresta foi
sepultando no esquecimento o seresteiro inautêntico. O epitáfio do campo santo,
junto com o estribilho dos que o levaram à sepultura, volta às ruas da cidade,
num coro uníssono: " O sertão homenageia seu pássaro seresteiro -
Temístocles - albatroz negra que vagueia pelas madrugadas".
Essa foi sua única ambição, seu maior desejo:
nas caladas da noite, tornar-se assombração. (extraído do livro do autor Faces & Interiores)
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