As lavadeiras do "João
Félix" acordam pelos restos da madrugada. Lá pelas quatro horas começa a
procissão silenciosa da caminhada da serra que sustenta o imenso morro chamado
Alto do João Félix. Uma a uma as casas simples começam a ser abandonadas,
deixando ainda sonolentos maridos, filhos e velhos alquebrados pelos anos. Nem
uma xícara sequer do gostoso cafezinho, torrado com açúcar no tacho de cobre,
serve de pedida inicial à disposição daquelas heroínas, que se apressam em
chegar mais cedo ao improvisado local de lavagem de roupas, em pedras brutas.
O "João Félix" é uma
fonte de nascente natural entre pedras rochosas. Várias outras pedras
espalhadas ao redor servem de lavanderia para as laboriosas lavadeiras, que
dispõem, como única opção de trabalho e curtos rendimentos, o lavado das roupas
da gente da cidade. Foi um costume que começou pouco a pouco, com a descoberta
da antiga minação, que por sinal é uma das que fornece água mais saudável para
os habitantes da cidade. Prefeitos e mais prefeitos por ali passaram e nenhum
deles se deu o trabalho de sanar a indigência d´água. Nos grandes centros do
país, já se vive a era do computador, mas lá no agreste do sertão o precioso
líquido parece uma dádiva milenar e miraculosa.
Mas as prefeituras continuam a
existir e com elas a dotação de verbas específicas. Todo prefeito que por ali
passou, sem exceção, construiu sua bonita casa e colocou caixas d´água em sua
residência, que eram abastecidas diariamente pelo carrego de animais ou pessoas
habituadas a esse serviço pesado. Até o ano de 1985, quando escrevia essa
crônica, esses fatos se repetiam como aleijões mentais, dado o hábito dos
administradores de não se imunizarem contra o individualismo (ou frequentemente
através do enriquecimento ilícito), que cega qualquer abertura à consciência
político-social.
Logo cedinho, a fonte
miraculosa apojava. Era uma alegria incontida ver aquelas senhoras apressadas
em dar conta das trouxas de roupa que traziam lá do pé da serra, onde adormecia
a pequenina cidade. Utilizando-se de potes de barro, as lavadeiras recolhem o
precioso líquido e junto às pedras informes esfregam e batem as roupas mais
encardidas. Estiram-nas ao sol ainda ensaboadas, aguardam o tempo do coradouro
e retomam o enxugamento. Trabalho ingente, esforço sobre-humano para aquelas
idades avançadas, algumas delas até prateando os cabelos. Por ali já passaram
Gersina, Maura, Francisca, Chica Rato, D. Ernestina, a velha Isabel. Mas a vida
lhes havia destinado aquela ocupação, por falta de outra diretriz e proposta de
trabalho na estrutura pública local. Pelo pão de cada dia, encetam a labuta
diária, com igual afinco e tenacidade. E disso se aproveitam para a troca de
experiências maiores.
Entre elas, em meio ao lavado
intensivo, havia um sentido de união e amizade que supera o comum das pessoas.
Ora é a meizinha que é ensinada a uma consulta formulada, ora são os sintomas
da doença de outra que servem de aviso para a recaída de uma outra, ora ainda é
a decepção pelo caso de uma filha que se tornou mulher e mãe sem que o
responsável aparecesse.... Esses temas compunham a tônica da maior parte das
conversas ali ouvidas, como se fossem capítulos de uma estirada novela ao
natural. Raras vezes o assunto exigia paralisação de todas para a escuta de um
caso esporádico, quer seja ligado a mortes naturais, quer seja referente a
assassinatos. Mas quando isso acontece , o silêncio é tão profundo que se ouvem
perfeitamente os movimentos dos sapos deslizando-se nas locas das pedras
encharcadas. Afora esses instantes de compenetração grande, ouvem-se as
desabridas gargalhadas soltas, com a contagem das presepadas feitas pelos
parentes de casa.
Lá do João Félix, a vista
contempla a cidade antiquada, delineando a planta das principais ruas. No pólo
extremo, vê-se o Galo Assanhado, a rua de Cima, onde está a imponente e
inacabada Igreja Mariz; mais à esquerda, o Mandacaru, com o velho cemitério
cheio de mortos antigos. No vale que cruza o centro da cidade, são vistos os
grandes telhados que recobrem os sobrados pioneiros das famílias (o de Sr.
Manezinho conjugado ao sobrado de Mariita/Chiquinho Malta), o sobrado que
pertenceu a Dumouriez Amaral, o prédio da Cadeia Pública ainda em pé,
imponente, e excelente local para reedificação de uma Biblioteca Pública
Municipal que nunca foi implementada. Desmoronou de repente todo o teto da
Cadeia, numa nota condenadora do descaso dos que foram representantes do povo e
não atentaram para o bem valioso que a cidade poderia preservar, e
culturalmente ser o celeiro de tantas leituras, estudos, salas de computação e
afins. A morte e desmoronamento do prédio da Cadeia tem o grau de perda de um
ente querido da cidade que se vai esquecido de todos.
Algumas dessas lavadeiras
conheceram de perto a vida daquelas famílias, dado o hábito de terem
acompanhado suas mães, tempo atrás, quando iam buscar as trouxas de roupa dos
casarões que hoje parecem derreados, abatidos e sem mais vida pulsando neles.
Quando se põem a retroceder no tempo, lembram melancolicamente o caso da
Rosinha, filha de Antônio Rodrigues, moça de tradição na cidade que teve seu
amor desfeito, e que agora passeia pelas ruas todo tempo portando uma flor,
indiferente aos feriados, domingos e dias de festas. Quando em vida, todas as
tardes ela costumava aparecer nas varandas dos jardins que se voltam para as
calçadas, fazendo a recolha de uma flor, de uma rosa, e só repete a mesma
expressão desde que atingiu o encantamento de vida: "como elas estão
lindas".
Absortas nessas recordações,
as lavadeiras entremeavam suas atividades com esses pendores imaginativos, ou,
por vezes, com outras reflexões condoídas. Dotadas de um senso prático e
intuitivo, essas primitivas criaturas sabem com antecipação as possibilidades
de uma boa safra de legumes e frutas; acostumadas a sondar o tempo, aquilatam a
previsão das chuvas e do estio. Nunca precisaram de relógio para demarcar suas
horas de trabalho. A réstia que perpassa os pés de mulungus assinala minuto a
minuto o transcorrer do tempo. Ali mesmo, à hora do meio-dia, deglutem o
gostoso feijão recheado a jerimum, maxixe e mocotó de porco, com bastante
farinha de mandioca.
É o princípio mítico que
norteia o pensamento selvagem dessa gente. Da força suscitada pelas águas,
deriva a sacralização do espaço construído, sendo aí revelada uma verdade
absoluta, como se fora a instauração de um novo mundo.
Para tanto, entregaram-se anos
sem fim às práticas dos mesmos rituais, não estabelecendo nexos de causalidade
entre a sua própria condição e a condição dos que têm urgência de
representá-los politicamente. Não conseguem fazer a passagem da sua condição de
natura para a condição de cultura. Limitam-se à vivência dos momentos sagrados
(míticos) que instituíram, e se comprazem com essa simbiose de vida que é
traduzida pela expressão corriqueira das respostas dadas: -"Vamos pelejando com as graças de Deus
e da Virgem Maria".
Nenhum comentário:
Postar um comentário