quinta-feira, 25 de agosto de 2016

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO - Ubireval Alencar




Como eram possíveis a vida e a comunicação num interior do sertão subnutrido e emagrecido pela intempérie das secas? Seria um longo documentário, mas fiquemos com a comunicação, os meios frequentes a que era forçada a moçada da cidade, crianças ainda na lenta evolução intelectual e disciplinar. Aqui o esboço apenas de um retrospecto memorialístico, em busca do tempo perdido da infância, adolescência de alguns e maturidade dos que não se empenharam à procura do desenvolvimento maior, na cidade grande.

Não havia o whatssap, o PC, o notebook. Fabricávamos um whats-de-rua, corpo a corpo, perambulando quais moleques soltos pelos arredores, ora em furtos leves nos pés de mangueira, cajueiro, ora invadindo terrenos à cata da pinha, goiabas e congêneres. E tudo na mais santa pureza da menoridade, sem ainda a presença de pedófilos - a praga futura da modernidade, molestando crianças, meninos e meninas. Ocupávamos nosso tempo livre, passadas as horas do Grupo Escolar Demócrito Gracindo, a correr ladeiras, tomar banhos no Cumbe  e no açude do Monte Santo, repleto de rãs e gias. Só na semana santa se dava a subida do ponto mais alto em busca do manuê.

Crianças felizes sem os atuais aplicativos dos celulares e imediatez, vivendo o mais autêntico papo de com todos nos comunicarmos, sempre encontrando nos apelidos da terra a forma mais rápida de referência: Maria Moca, Chica Rato, Zé Doido, Pereirinha, Carmó, Júlia Gringa, Porongas do cego Vicente. Havia biguzeiras contumazes, na passagem dos carros-de-boi pelo centro da cidade, deles se utilizando como atrativo momentâneo na circulação pelas tortuosas ruas curtas. O boi de Zé Grilo era o táxi da época de toda molecada, rua acima, rua a baixo.

Havia figuras notórias no modo de levar recados, avisos. Icleia Malta percorria as calçadas altas como se fosse bala perdida. O singular Palito ganhara apelido por não soltar o palito da boca, pós refeições. E nos faz falta o homem dotado de especialidade e com empolgante oratória, mas sempre presente à passagem das procissões festivas. O solitário Vilar (filho do seu João Vilar) se punha na parte mais alta do calçamento, na boca da Rua Nova, ora a declamar o poema do alumbramento de viver, ora a empregar falas de ativista de grande contundência local. Entre cânticos e hinos das devotas, soava a voz do homem ensimesmado na existência terrena.

Onde andam os jumentos com ancoretas, carroças, e galões d´água no ombro do carregador diário, rotineiro, no abastecimento das residências? E a feira comprida de sábado ocupando toda rua de Baixo (Ubaldo Malta), recheada de víveres, frutas, verduras  e mantimentos trazidos das serras e localidades circunvizinhas? Pompílio Gomes vivia postado em frente a sua residência, na conferência dos habituais compradores de sacolas recheadas pra toda a semana. Os que já rumaram para outras cidades e sudeste do país sentem falta das rapaduras, dos alfenins, lá mesmo degustado como se fosse o "coffee break " das manhãs. Galinhas, capões, carneiros e cabritos só eram encontrados lá nas proximidades da padaria de Seu Panta e dos negócios com couros, do Agnelo Bobinha.

Havia um musicista de instrumento de sopro, de nome Mestre Fedor, cuja esposa era professora no grupo. Teresinha tocava aos domingos no órgão envelhecido da paróquia. Resistia pelas calçadas como se fosse alma ambulante. E o filho Paganini vivia também essa Ópera da existência louca. Hoje resta um grande silêncio no alto-falante de Zé de Doro. E Júlia Gringa não mais recebe nas caladas da noite seus habituais visitantes solteiros, e também casados dissolutos na leviandade de gozar a vida. Apagou-se a figura excêntrica e de vida alternativa que não pisava o calçamento irregular, mas por ele desfilava, cônscio da sua vida alternativa, e de alongados olhares para os belos mancebos em que a cidade sempre foi pródiga, geração a geração. Zé Davi passava indiferente aos xingamentos, vaias e assobios da rapaziada preconceituosa e mal versada na aquilatação dos reais valores humanos. No insulto e cuspo despejado sobre ele, na verdade vomitavam sua própria miséria moral e social.

Aos sábados a riqueza dos figurantes de fora era mais comemorada. Lá de Poço Branco vinha a fazendeira Condinha - renomada pela ostentação de lindas e originais joias em ouro e brilhantes. Marilyn Monroe a invejaria no retumbante batom vermelho, cujo sorriso abrilhantava com dentes recobertos de ouro. De Inajá, Santa Cruz, Inhapi e Canapi se acotovelavam caminhões e caminhonetas abarrotadas de feirantes, sobretudo quando o ano de chuvas deixava apojados os açudes e fértil a plantação. O vento chuvoso e friorento eram as bênçãos vindas dos céus, patrocinando mais um ano de prosperidade e bons negócios em toda redondeza.

Mas desmoronaram os solares do Seu Manezinho (Manoel Martins) e de Mariita. Dona Lizete não mais faz canções improvisadas para as lindas moças habitantes do solar imponente. No térreo, o variegado sortimento de tecidos, couros e arreios à venda, e sustentáculo da educação dos filhos, em estágios e cursos nas cidades grandes. No andar superior, o confinamento e organização das belas moças, sempre requintadas em apresentação e bom gosto. E não se ouvem mais os chamados de "priminho pra cá, priminho pra lá".

Um cortejo conduzindo um enterro acomodado em rede doméstica e singela revela mais um assassinato na redondeza, silenciando por momentos os bebuns do bar de Noca e de Dinô. Cassaco do bar ainda não havia sido assassinado por ter língua solta. Renato de Vieira viveu esse extremo de provocar sua tragédia por um ente familiar, zombando da vida, de si, e do mundo. E na madrugada dos bailes e festanças não mais acontece a procissão de pés descalços dos frequentadores do clube PAZ E AMOR, quando os cansados festeiros e festeiras são forçados a retornar, sobretudo elas, com saltos dependurados nos dedos, vítimas de calos e pisão dos pares dançantes.

O dia seguinte aos festejos na cidade, ou na trivialidade do dia-a-dia, é motivo de reunião do simbólico Senado de membros  que se alinham no entorno das escadarias da Prefeitura. Um a um vêm chegando os eternos desocupados e ociosos costumeiros. À época, Paulo Ricardo, Renato de Vieira, Levi, Bem-te-vi, Zeca Bernardino, Ismar, Tonho Malta, Deliro e outros que se somam aos poucos e iniciam a confabulação crítica dos fatos, episódios e pessoas que foram notoriedade na semana. Raros casos por atos de brilhantismo.

 Mais pelo motivo jocoso e depreciação de pessoas. O tom de piadas é o mais forte e picante, impróprio para menores. E assim passam horas na mesmice do falatório até o instante em que um convite para boas "lapadas" da serra-grande, pitu se efetiva. Lá, na esquina da câmara viva e natural do olho humano e míope, deságuam mágoas, injustiças presumidas, e se dão as mãos na mediocridade de viver.

Mas permanecem ressoando como sinos de catedrais a devoção e denodado esforço das professoras primárias. Desde os que alcançaram Dona Argentina Fortes (mãe de Cristiniano, ex-prefeito), Dona Lizete já introdutora de áudio-visuais e que entremeava as explicações de aula com canções de entusiasmo ao estudo e à dignidade da vida ("quem trabalha/ persevera/ nunca é tarde/ sempre espera./ Mocidade é esperança/ mocidade é primavera./ Quem trabalha sempre alcança". A professora Anunciada, galardão de responsabilidade e diretriz educativa, as professoras D. Eva Bezerra Brandão, Vanda Pantaleão, Josefina Canuto, Nina Pinto foram marcos sucessórios na devocional vocação do magistério. Repicam em nosso cérebro, na memória local, como fontes cristalinas de modelo de aprendizagem, dedicação e ternura para os mais compadecidos e carentes. Urbano Malta e Suely Malta tiveram esse aconchego maior na traumática condição de sobreviver à perda dos seus entes queridos.











   




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