domingo, 5 de junho de 2016

TEMÍSTOCLES VERÍSSIMO GUIMARÃES- Ubireval Alencar


"AQUI JAZ A ALBATROZ NEGRA DO SERTÃO". Era o epitáfio que intitulava a tumba onde iria repousar a figura folclórica que marcou época na longínqua e memorável Mata Grande. Velhos amigos se dirigiam ao local irrecusável, acompanhando os despojos do cancioneiro infalível, e que agora pede licença para descansar.

Coisa muito bonita de se ver, ainda hoje, pelos interiores tardios, aquele contingente humano, a pé, prestando as últimas homenagens ao amigo que se despede. Há sempre um interesse maior de cada acompanhante de chegar até à alça do caixão e poder carregar o esquife movediço. É como se fosse, não apenas o tributo mais espontâneo de solidariedade, mas um tipo de prestação, a curto ou longo prazo, da futura dívida a contrair junto à comunidade.

Os homens se aprestam em cumprir essa tarefa,  enquanto as mulheres vêm mais atrás, com flores e grinaldas. Como em tantas outras coisas, o machismo interiorano aqui se traveste de um cavalheirismo louvável. Nesse dia, os homens põem sua indumentária mais nobre, enquanto as mulheres se cobrem com a palidez do cinza ou tonalidade próxima, numa analogia profunda com o sentimento religioso da paixão, da dor. Aqueles (as) que a longevidade impede a locomoção debruçam-se por sobre os beirais das janelas, ou aguardam sentados em antigas cadeiras, à soleira da porta, perscrutando o sinal do embarque definitivo.

À medida que a procissão fúnebre andava, eram relembradas as longas asas com que a albatroz negra sobrevoava as calçadas da tão desgastada cidade. Muitos pés fizeram caminhada a partir dali, levantaram voo bem alto, mas poucos se lembraram de recuperá-la. As compridas canelas do conhecido TEMISTO trambicavam igual a urubu cangueiro acossado pelas baleadas da meninada. Dois metros e lá vai pedrada era a altura imponente daquela criatura imperial. Parecia relíquia da época áurea.

 O queixo atirado, beiço derreado pelo peso do imutável cigarro de palha, a dentuça transparecendo os resquícios da nicotina acumulada, lá se vai a ave duradoura do sertão, com seus quase noventa anos de idade, guardando a sete chaves o laço enigmático da intimidade.


Logo cedinho, Temístocles espreguiçava a última noite indormida, quando se dera a mais um  recital de poemas, entremeado de canções langorosas. Do bar de Noca ao de Dinô, segue aquele ritual diário de um copo aqui, uma garrafa ali. Sempre a insubstituível pinga da braba. Pitu ou Serra Grande. Seresteiro da noite, criara o hábito de longa data, quando maloqueirava pelos sítios Gato e Marrecas. A boemia sempre foi o atrativo indomável. Enrolara caboclas e mais caboclas desprevenidas, em noitadas de furdunço. Conseguira sair-se bem em meio a facadas, tiros de rompante, fugas mirabolantes. Era a peça indispensável em  qualquer farra, casamento, ou arruaça.

Atento a todo fato local, discutia da matéria literária, política à matéria filosófica. Sabia de cor versos e mais versos de Augusto dos Anjos, de Castro Alves. Recitava-os nos intervalos das canções lânguidas, sempre acompanhado de um violão. Não mudava os poetas nem as canções. Orestes Barbosa, Noel Rosa eram seus cancioneiros prediletos. Vicente Celestino só era invocado uma única vez na noite, quando os efeitos do álcool o deixavam além de suas expectativas.

O Temisto, vulgarmente conhecido, tornara-se um solteirão inveterado, após alguns anos de casado, e vários filhos espalhados entre várias mulheres. Efetivamente, só conhecia dois, aos quais respondia a bênção diária com o "Deus te abotoe". Era a figura apresentável à curiosidade de qualquer visitante. Na companhia do mocotó de porco, na discussão acalorada sobre política, na confidência do último crime praticado, ali estava o amigo e confessor profano, dando sua palavra sugestiva, com o olhar oblíquo. Nessas horas, não parecia o gigante físico que era. Dobrava-se cautelosamente até o confidente e acomodava os enormes braços nas pernas desengonçadas. Quem chegasse por perto sabia que se tratava de colóquio sigiloso. E assim arquivou, ano a ano, a delação de muitos fatos e crimes jamais suspeitos. Quando se tratava de zombaria ou piada imprópria, também se privava com uma única gargalhada desregrada, que se juntava à tosse pigarrenta e de escarro estridente.

Compensava, nesses gestos solidários, a solidão que construíra, tempos atrás, pelo descaso que proporcionara aos que lhe eram íntimos. Não culpara a vida nem ninguém, e se julgava de posse de um destino safado com quem brigaria até o fim. Vivia como se fosse uma espécie de inventário e pensamento crítico do arquivo temporal. E é chegado o momento de sujeitar-se ao julgamento da História. Era essa uma das reflexões feitas pelo último orador, no momento em que o ataúde descia as paredes sepulcrais. Temístocles havia encontrado na cidadezinha fecunda o prato feito para o seu gosto. Ali havia um celeiro de improvisados seresteiros. Cada um queria primar pela sua reputação. Mas o tempo foi passando, e cada seresta foi sepultando no esquecimento o seresteiro inautêntico. O epitáfio do campo santo, junto com o estribilho dos que o levaram à sepultura, volta às ruas da cidade, num coro uníssono: " O sertão homenageia seu pássaro seresteiro - Temístocles - albatroz negra que vagueia pelas madrugadas".

 Essa foi sua única ambição, seu maior desejo: nas caladas da noite, tornar-se assombração. (extraído do livro  do autor Faces & Interiores)
























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