sábado, 11 de junho de 2016

AS LAVADEIRAS DO JOÃO FÉLIX-Ubireval Alencar




As lavadeiras do "João Félix" acordam pelos restos da madrugada. Lá pelas quatro horas começa a procissão silenciosa da caminhada da serra que sustenta o imenso morro chamado Alto do João Félix. Uma a uma as casas simples começam a ser abandonadas, deixando ainda sonolentos maridos, filhos e velhos alquebrados pelos anos. Nem uma xícara sequer do gostoso cafezinho, torrado com açúcar no tacho de cobre, serve de pedida inicial à disposição daquelas heroínas, que se apressam em chegar mais cedo ao improvisado local de lavagem de roupas, em pedras brutas.
O "João Félix" é uma fonte de nascente natural entre pedras rochosas. Várias outras pedras espalhadas ao redor servem de lavanderia para as laboriosas lavadeiras, que dispõem, como única opção de trabalho e curtos rendimentos, o lavado das roupas da gente da cidade. Foi um costume que começou pouco a pouco, com a descoberta da antiga minação, que por sinal é uma das que fornece água mais saudável para os habitantes da cidade. Prefeitos e mais prefeitos por ali passaram e nenhum deles se deu o trabalho de sanar a indigência d´água. Nos grandes centros do país, já se vive a era do computador, mas lá no agreste do sertão o precioso líquido parece uma dádiva milenar e miraculosa.
Mas as prefeituras continuam a existir e com elas a dotação de verbas específicas. Todo prefeito que por ali passou, sem exceção, construiu sua bonita casa e colocou caixas d´água em sua residência, que eram abastecidas diariamente pelo carrego de animais ou pessoas habituadas a esse serviço pesado. Até o ano de 1985, quando escrevia essa crônica, esses fatos se repetiam como aleijões mentais, dado o hábito dos administradores de não se imunizarem contra o individualismo (ou frequentemente através do enriquecimento ilícito), que cega qualquer abertura à consciência político-social.

Logo cedinho, a fonte miraculosa apojava. Era uma alegria incontida ver aquelas senhoras apressadas em dar conta das trouxas de roupa que traziam lá do pé da serra, onde adormecia a pequenina cidade. Utilizando-se de potes de barro, as lavadeiras recolhem o precioso líquido e junto às pedras informes esfregam e batem as roupas mais encardidas. Estiram-nas ao sol ainda ensaboadas, aguardam o tempo do coradouro e retomam o enxugamento. Trabalho ingente, esforço sobre-humano para aquelas idades avançadas, algumas delas até prateando os cabelos. Por ali já passaram Gersina, Maura, Francisca, Chica Rato, D. Ernestina, a velha Isabel. Mas a vida lhes havia destinado aquela ocupação, por falta de outra diretriz e proposta de trabalho na estrutura pública local. Pelo pão de cada dia, encetam a labuta diária, com igual afinco e tenacidade. E disso se aproveitam para a troca de experiências maiores.
Entre elas, em meio ao lavado intensivo, havia um sentido de união e amizade que supera o comum das pessoas. Ora é a meizinha que é ensinada a uma consulta formulada, ora são os sintomas da doença de outra que servem de aviso para a recaída de uma outra, ora ainda é a decepção pelo caso de uma filha que se tornou mulher e mãe sem que o responsável aparecesse.... Esses temas compunham a tônica da maior parte das conversas ali ouvidas, como se fossem capítulos de uma estirada novela ao natural. Raras vezes o assunto exigia paralisação de todas para a escuta de um caso esporádico, quer seja ligado a mortes naturais, quer seja referente a assassinatos. Mas quando isso acontece , o silêncio é tão profundo que se ouvem perfeitamente os movimentos dos sapos deslizando-se nas locas das pedras encharcadas. Afora esses instantes de compenetração grande, ouvem-se as desabridas gargalhadas soltas, com a contagem das presepadas feitas pelos parentes de casa.
Lá do João Félix, a vista contempla a cidade antiquada, delineando a planta das principais ruas. No pólo extremo, vê-se o Galo Assanhado, a rua de Cima, onde está a imponente e inacabada Igreja Mariz; mais à esquerda, o Mandacaru, com o velho cemitério cheio de mortos antigos. No vale que cruza o centro da cidade, são vistos os grandes telhados que recobrem os sobrados pioneiros das famílias (o de Sr. Manezinho conjugado ao sobrado de Mariita/Chiquinho Malta), o sobrado que pertenceu a Dumouriez Amaral, o prédio da Cadeia Pública ainda em pé, imponente, e excelente local para reedificação de uma Biblioteca Pública Municipal que nunca foi implementada. Desmoronou de repente todo o teto da Cadeia, numa nota condenadora do descaso dos que foram representantes do povo e não atentaram para o bem valioso que a cidade poderia preservar, e culturalmente ser o celeiro de tantas leituras, estudos, salas de computação e afins. A morte e desmoronamento do prédio da Cadeia tem o grau de perda de um ente querido da cidade que se vai esquecido de todos.
Algumas dessas lavadeiras conheceram de perto a vida daquelas famílias, dado o hábito de terem acompanhado suas mães, tempo atrás, quando iam buscar as trouxas de roupa dos casarões que hoje parecem derreados, abatidos e sem mais vida pulsando neles. Quando se põem a retroceder no tempo, lembram melancolicamente o caso da Rosinha, filha de Antônio Rodrigues, moça de tradição na cidade que teve seu amor desfeito, e que agora passeia pelas ruas todo tempo portando uma flor, indiferente aos feriados, domingos e dias de festas. Quando em vida, todas as tardes ela costumava aparecer nas varandas dos jardins que se voltam para as calçadas, fazendo a recolha de uma flor, de uma rosa, e só repete a mesma expressão desde que atingiu o encantamento de vida: "como elas estão lindas".
Absortas nessas recordações, as lavadeiras entremeavam suas atividades com esses pendores imaginativos, ou, por vezes, com outras reflexões condoídas. Dotadas de um senso prático e intuitivo, essas primitivas criaturas sabem com antecipação as possibilidades de uma boa safra de legumes e frutas; acostumadas a sondar o tempo, aquilatam a previsão das chuvas e do estio. Nunca precisaram de relógio para demarcar suas horas de trabalho. A réstia que perpassa os pés de mulungus assinala minuto a minuto o transcorrer do tempo. Ali mesmo, à hora do meio-dia, deglutem o gostoso feijão recheado a jerimum, maxixe e mocotó de porco, com bastante farinha de mandioca.
É o princípio mítico que norteia o pensamento selvagem dessa gente. Da força suscitada pelas águas, deriva a sacralização do espaço construído, sendo aí revelada uma verdade absoluta, como se fora a instauração de um novo mundo.
Para tanto, entregaram-se anos sem fim às práticas dos mesmos rituais, não estabelecendo nexos de causalidade entre a sua própria condição e a condição dos que têm urgência de representá-los politicamente. Não conseguem fazer a passagem da sua condição de natura para a condição de cultura. Limitam-se à vivência dos momentos sagrados (míticos) que instituíram, e se comprazem com essa simbiose de vida que é traduzida pela expressão corriqueira das respostas dadas:  -"Vamos pelejando com as graças de Deus e da Virgem Maria".








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