segunda-feira, 23 de maio de 2016

A SINGULARIDADE DE UM QUARTETO DA PREFEITURA – Ubireval Alencar


A SINGULARIDADE DE UM QUARTETO DA PREFEITURA – Ubireval Alencar
É muito comum nas cidades interioranas defrontar-se o visitante com o inusitado modo de viver de determinadas personalidades. Pela sua conformação física, segundo o modo como se portam, trabalham ou se exprimem, elas se constituem um dos modos singulares de vida, distinguindo-se do proceder normal e rotineiro das pessoas habituadas à grande cidade.
O quarteto aqui referido não diz respeito à composição de membros para efeito musical. A sinfonia do modo de vida das personagens é o texto que interessa e que deverá ser posto em questão. Aproveito-me de nomes à época conhecidos por apelidos locais, hoje certamente não mais vivos, e que se tornaram quase lendas interioranas. Mas a história real de cada uma delas deve ter sido bem diferente e com certeza com muito mais interesse que as qualidades aqui apontadas.
Zé Grilo, Mané Moco, Corró e (seu Bié) Sete-Bundas eram apelidos atribuídos aos lixeiros que faziam a coleta  da cidade, num interior qualquer ainda de extremo subdesenvolvimento.  Zé Grilo era um dos mais franzinos, de pequena estatura, boca larga e olhar esbugalhado. Mané Moco, antes de tudo meio surdo, era um dos mais ágeis no desempenho do trabalho, talvez pelo porte médio e compleição física mais forte; Corró era deficiente de um olho, muito magro e com sequelas de subnutrição; Sete-Bundas era o tipo bonachão, de traseiro reforçado, que lhe valeu o epíteto da conta do mentiroso.
Tudo isso coexistiu na cidade de clima dos mais agradáveis em pleno sertão nordestino, entre as fronteiras de Alagoas, Pernambuco e Bahia.
Por anos seguidos, entregaram-se à partitura de comandar a carroça de lixo, que na verdade era a metade de uma carroceria de caminhão, puxada a animal. O boi de Zé Grilo, como era conhecido pela meninada local, percorria as ruas da pequenina cidade arrecadando aqui e ali os despojos das latas. Tamanho caráter assumiu esse quarteto que até virou modinha na cidade, cujo estribilho terminava sempre na divisão dos hexassílabos         

                                                                A carroça do lixo

                                                                parece uma zabumba,

                                                                Zé Grilo, Mané Moco

                                                                Corró e Sete-Bunda

                                                                                                                                                                                     
 Mas, antes da coleta propriamente dita, todas as ruas eram varridas, e só posteriormente eram arrecadados os entulhos deixados por animais, crianças e adultos.
Ecólogos prematuros, não se limitavam apenas à apanha do que encontravam pelas ruas, mas também tomavam a liberdade de preservar as poucas árvores que a molecada teimava em destruir. Haviam plantado aquelas árvores, por elas sentiam-se responsáveis, e por isso impediam que elas fossem destruídas gratuitamente. Havia também um efeito catalisador. Aquelas árvores serviam-lhes de abrigo durante o sol inclemente. Eram uma espécie de apaziguamento e refrigério momentâneo, nas horas de calor escaldante.
O quarteto também se caracterizava por uma outra peculiaridade, que os fazia mais conhecidos, um tanto admirados, e, em determinados instantes, principalmente aos sábados, dia de feira, excelentemente aplaudidos. É que nesses dias se realizava a feira de frutas, verduras, carne e outros gêneros alimentícios. O universo dos supermercados ainda não havia adentrado aquele espaço interiorano. Em contrapartida, toda população
 comprimia-se na busca de angariar o suficiente para a família e na quantidade satisfatória para a duração de uma semana. Ao final da tarde, começava a limpeza grande, com a recolha dos restos de feira que muitas vezes servia, para muitos desfavorecidos, desempregados e pobres, de migalhas comestíveis. 
Concluídos os trabalhos, exaustos, os componentes do quarteto começavam a etapa comemorativa do dia no bar mais próximo. Afeitos ao sabor da cachaça mais forte, prosseguiam naquela bebedeira à proporção que surgia um pagante mais pródigo. Criaram esse hábito ao longo dos anos. Agora, na idade avançada, tinham nesses momentos sua rara oportunidade de desafogar mágoas e carências de outros bens que efetivamente nunca se decidiram a lutar por eles. E a cachaça ia-se repetindo em mais uma, mais outra, agora sob os auspícios de um pequeno grupo de rapazes que os instigavam. O ponto ideal dava-se quando começavam a discutir e brigar entre si. A plateia que os havia preparado para esse momento se põe a exercer seu papel influente. Fazem provocações, xingam-nos, dizem que um dos componentes havia xingado o outro, inventam mentiras a torto e a direito, de modo a que os contendores se exaltem e o litígio se instaure.                                                       
Raras vezes essas discussões tiveram proporções maiores, com derramamento de sangue ou fatos similares. O mais comum nessas bebedeiras é haver troca de empurrões, tapas, xingações e depois as coisas terminavam em abraços desencontrados ou até choros catárticos, que se juntavam aos propósitos de eterna amizade. O que não seria capaz de realizar o miraculoso álcool nas mãos desses sacerdotes da vida pública? Por toda vida acompanharam esse ritual fascinante, cujo modelo foi passando de geração a geração. Por que haveriam de negar, também eles, essa prática inveterada do festim dos deuses?
É chegado o momento da contagem regressiva para o retorno às suas casas. Cada um dos componentes tem seu caminho mais tortuoso. Mas a desordem mental os faz entrar em portas que não deveriam, tropeçam em batentes imaginários, e ainda deixam extravasar atos e paixões nunca antes confessados. São verdadeiras notas musicais em desacordes. A essa altura, o cortejo de moleques e desocupados de todas as idades se põe à espreita do desenrolar dos acontecimentos, ou ajudam a compor aquela cena hilariante com a algazarra de uns, assobios e vaias de outros, constituindo-se a nota dissonante, excêntrica e desejável daquela tarde.




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